Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

IMPRECISÃO E GENERALIZAÇÃO NA WEB


JORNAL DO COMÉRCIO 08/10/2015



Juliano César de Lazari




A internet é um meio privilegiado para a pesquisa e para a defesa de princípios e propostas. Mas em muitos casos é usada para disseminar ideias superficiais. Noções sem alicerces precisos podem se tornar fontes problemáticas na construção de valores e de referenciais.

Uma análise atenta de opiniões e diálogos publicados em várias plataformas virtuais nos leva à identificação da presença frequente de críticas irrefletidas a ideias e a pessoas. Em muitos debates percebe-se a preocupação com a orgulhosa conquista da vitória, isto é: procura-se vencer a discussão apoiando-se em noções ou fatos muitas vezes fora de contexto e convenientes para que uma ideia seja avaliada como correta. Existem exceções. Contudo, é necessário condenar o hábito de generalizar partindo de fatos sem análise séria e sem descrição dos detalhes: a "popular" generalização apressada.

Um posicionamento expresso de forma categórica será verossímil se apresentar embasamento em fatos e em raciocínios concisos. As informações disponíveis na rede devem ser rigorosamente analisadas, comparadas e avaliadas. Ao criticar correntes de pensamento, instituições ou ideias é necessário apresentar fundamentações detalhadas, citar as fontes e examinar o contexto em que o fato ocorreu e no qual as interpretações foram construídas. Caso contrário, corre-se o risco de cometer erros e causar injustiças de difícil reparação.

Os espaços virtuais devem ser utilizados para o debate racional, responsável e permeado por esforços rumo à construção do diálogo honesto em que se respeita a alteridade. É preciso mobilizar os ensinos Básico e Superior para educar e promover o espírito analítico, a objetividade e a prudência.
Professor e mestre em Filosofia

domingo, 4 de outubro de 2015

SONHOS PARTIDOS




ZERO HORA 04 de outubro de 2015 | N° 18314


CARLOS ROLLSING


OS NOVOS ROSTOS DA IMIGRAÇÃO, apresentados há um ano em reportagem de ZH, passam por desilusão. Precisam enfrentar a disputa por trabalho e o preconceito. Poucas são as histórias de sucesso. Muitos querem retornar a seus países



Haitianos que migraram ao Rio Grande do Sul em busca do eldorado, as famílias de Diufene, Oline e Sajele têm mais em comum do que a nacionalidade: estão decididos a ir embora do Brasil, seja para tentar sucesso em outro país ou retornar à terra natal. A crise corroeu o sonho brasileiro.

Caribenhos e africanos chegaram esperançosos e conseguiram viver bons dias até o aprofundamento da instabilidade econômica e política. Agora, são atormentados por desemprego, salário baixo, dólar alto, sub-habitação e marginalização.

O último levantamento divulgado pelo Ministério da Justiça, publicado em agosto passado, indica que, desde 2011, quando houve a explosão migratória, ingressaram no Brasil 45.607 haitianos. Parcela significativa já foi embora.

– Ao mesmo tempo em que recebemos imigrantes, muitos estão saindo do Brasil. Cerca de 10 mil haitianos deixaram o país. Não necessariamente para voltar ao Haiti, mas para procurar outras nações. Muitos têm ido ao Chile. Eles saem pelas dificuldades que encontram e, principalmente, pela frustração que experimentam na vinda ao Brasil – analisa o padre Lauro Bocchi, diretor do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações), instituição vinculada à Paróquia da Pompeia, em Porto Alegre.

Diufene Dumerjuste mora em Bento Gonçalves, na Serra, há mais de três anos. Em fevereiro de 2014, trouxe do Haiti a mulher, Beatrice, e a filha Joice. Ela jamais conseguiu emprego. Em abril deste ano, tiveram a segunda filha: Mari Claire Angelica, uma brasileira.

Trabalhando em uma metalúrgica, Diufene recebe R$ 1,2 mil ao mês. Seu salário será rebaixado até o final do ano porque a empresa fez um acordo de redução de jornada, decorrência da crise. Com o que ganha, paga R$ 600 de aluguel – a metade da sua remuneração total –, sem contar gastos com água, luz, alimentação e vestuário da família de quatro pessoas.

– Não levamos uma vida boa, bastante gente quer ir embora. Pedi para ser demitido até janeiro. Com o dinheiro da rescisão, voltarei ao Haiti. Mas não me prometeram nada – lamenta Diufene, que, em uma gélida noite de setembro em Bento Gonçalves, recebia em sua casa dois compatriotas que chegaram há meses ao país, mas seguem desempregados.

Com a alta da moeda americana, o imigrante não consegue mais mandar dinheiro e ajudar a família que ficou para trás – são necessários muitos reais para comprar poucos dólares. E esse sempre foi um dos principais objetivos da aventura no Brasil.

Em Marau, Oline Desruisseaux e Sajele Rodrigue também querem fazer as malas. Oline trabalha em uma padaria, na área de serviços gerais. Sua irmã, Nadesh, chegou ao Brasil só em novembro de 2014. Foi contratada para trabalhar em um frigorífico, em Mato Castelhano, distante poucos quilômetros de Marau. A mulher de Sajele era empregada do mesmo abatedouro de suínos.

Em agosto, a indústria fechou as portas. Segundo o Sindicato da Alimentação de Tapejara, que atende a região, problemas de higiene e de segurança do trabalho estiveram entre as motivações. Os funcionários foram mandados para casa, sem receber nenhum valor rescisório. Por questões burocráticas, sequer conseguiram encaminhar o seguro-desemprego.

Dificuldades de comunicação deixam os haitianos perdidos, não sabem a quem recorrer para cobrar o frigorífico. Essa é outra face cruel da imigração: ingênuos e alheios às labirínticas leis brasileiras, são frequentemente ludibriados.

Oline, com seu salário de R$ 1 mil, sustenta a irmã e a filha Ana e paga aluguel, luz, água e alimentação.

– Passei dois anos aqui, pensei que tudo melhoraria, mas só piorou. Não posso ficar mais. Antes, precisava de R$ 230 para mandar US$ 100 ao Haiti. Hoje, preciso de R$ 440 para os mesmos US$ 100. Decidi voltar. Agora é juntar dinheiro para a passagem, que está custando R$ 5 mil – diz Oline.

Há pouco mais de um ano, quando ZH esteve em Marau para produzir a reportagem Os Novos Imigrantes, Oline tinha a pequena Ana nos braços, recém-nascida, e depositava esperança no sonho brasileiro. Tudo mudou radicalmente em apenas uma porção de meses.

Sajele está desempregado, faz bicos de pedreiro, mas poucas oportunidades surgem com a desaceleração da construção civil. Insistentemente, aponta para um Uno cor de vinho estacionado próximo do centro de Marau e expõe o seu plano.

– Aquele auto é meu. Se me derem R$ 4 mil, vendo. Primeiro, mando minha mulher de volta ao Haiti. Depois, dou um jeito de comprar a minha passagem.

Levantamentos do Cibai Migrações e da seção gaúcha de Mobilidade Humana da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) indicam que 13,7 mil imigrantes caribenhos e africanos estão vivendo no Rio Grande do Sul, a maioria na Serra, no Planalto e nos vales do Taquari e do Rio Pardo. Cerca de 9 mil são haitianos, 4 mil são senegaleses e os demais se dividem entre naturais de República Dominicana, Gâmbia, Gana e Bangladesh, além de alguns outros.

– Avaliamos que, entre os imigrantes, o desemprego está em 20% – diz o padre João Cimadon, coordenador do setor de Mobilidade Humana da CNBB no Estado.

Ainda são estimativas, mas as organizações ligadas à Igreja são as que contabilizam números mais próximos da realidade. Continua sendo com as instituições religiosas o principal vínculo dos imigrantes, seja no momento da acolhida inicial ou no pedido de ajuda rotineiro. O poder público apenas começa um trabalho de envolvimento. Os efeitos da crise também aparecem em dados do Sine no mês de setembro.

– Hoje temos 2.246 imigrantes de todas as nacionalidades cadastrados nas agências do Sine do Estado, mas sabemos que a maioria é de haitianos e senegaleses. Significa dizer que eles estão na informalidade ou desempregados – explica Juarez Santinon, presidente da Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS).

Na rotina dos municípios, a virada no boom migratório é perceptível. Em Bento Gonçalves, viviam 1,7 mil haitianos até 2014. Neste ano, o número baixou para mil, conforme a prefeitura, amparada por dados da Polícia Federal. Para a associação de imigrantes local e a Paróquia Santo Antônio, 1,3 mil ainda estariam na cidade.

Com o desemprego, centenas partiram. Segurando listas nas mãos, Ronald Dorval, presidente da Associação de Haitianos de Bento Gonçalves, diz que 350 imigrantes do seu país estão desempregados por lá. Dados da prefeitura também preocupam: cerca de cem caribenhos – o que pode significar até 10% dos que estão no município – recebem Bolsa Família. É um indicativo de miséria, já que é preciso ter renda per capita mensal de até R$ 154 para obter o benefício.

– Acredito que a redução de imigrantes passa pela frustração deles, até de exercer um serviço pesado para o qual não foram capacitados. Muitos têm formação superior, a gente vê arquitetos e advogados pintando paredes ou na base da indústria. Hoje, existe um movimento de saída da cidade. Para essas pessoas, realmente acredito que o sonho não se tornou realidade – diz Guilherme Pasin (PP), prefeito de Bento Gonçalves.

Em Erechim, no norte do Estado, o número de imigrantes senegaleses foi reduzido de uma centena para 60 entre 2014 e 2015, conforme a Associação de Apoio aos Africanos em Erechim e Região (Asafer).

– Dos que ficaram, um grupo considerável está desempregado e foi para a informalidade – diz o professor e sociólogo Dirceu Benincá, que se uniu à direção da Asafer.

A adesão dos imigrantes às vendas ambulantes é crescente. Em Caxias do Sul, nos arredores da Praça Dante Alighieri, contígua à imponente catedral, estão amontoados pelas calçadas. Em seus tabuleiros ou caixas de papelão, expõem meias, toucas, luvas, relógios, cintos, carteiras, anéis reluzentes e uma enormidade de bijuterias.

Em uma tarde fria de setembro, somente em uma quadra da Avenida Júlio de Castilhos, em frente à praça, havia 13 ambulantes senegaleses e haitianos. Eles disputam a preferência dos clientes com os brasileiros que também dependem da atividade. Por vezes, homens se aproximam, cochicham algo aos ambulantes. Depois, desaparecem.

Enquanto isso, outros imigrantes passam o tempo, mexem no celular, conversam em rodas, fitam o horizonte vazio.

Nas pacatas e organizadas cidades de descendentes europeus, um movimento de marginalização dos estrangeiros se torna cada vez mais preponderante. Quem anda pelas simpáticas ruas de Encantado, de apenas 22 mil habitantes, no Vale do Taquari, não imagina que ali tenha uma periferia. Mas há. E os haitianos e dominicanos que trabalham no frigorífico Cosuel, em maioria, moram lá. É o bairro Navegantes, uma baixada alagadiça, com casebres de madeira, sujeira e entulho nas ruas. Também há tráfico de drogas e violência. Em Bento Gonçalves, os haitianos moram massivamente nos bairros Eucaliptos e Conceição, ambos periféricos. É o caso de Mistrale Lozin:

– Moramos aos montes em uma casa. Já morei com nove. E também estão ocorrendo muitos roubos. Um amigo nosso saiu de casa para trabalhar e, quando voltou, tinham arrombado e levado notebook, documentos e mais um dinheiro.

Se os imigrantes foram alcançados pelo desemprego, crise e violência, ainda há faces positivas da presença deles no Brasil. Os empresários estão satisfeitos com o comprometimento dos forasteiros. Assumem serviços pesados que, até então, estavam vagos devido ao desinteresse do brasileiro que conquistou qualificação e ascensão financeira.

– Tivemos redução de pessoal em 2015, mas os chefes da fábrica sempre procuraram preservar o emprego dos 15 senegaleses que estão conosco. Gostam do trabalho deles, são habilidosos – diz Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro Móveis, de Caxias do Sul.

A maioria ainda está trabalhando, muitos deles empenhando parte do seu dinheiro para auxiliar com alimento e moradia os compatriotas desempregados. Os problemas econômicos do Brasil não farão cessar o fluxo migratório.

– É um processo silencioso e lento. É provável que, com a crise, haja diminuição, mas não vai terminar. Por isso, não falo em onda migratória: é um movimento contínuo, com altos e baixos. Se o Brasil quer ser líder regional na política e na economia, terá de se abrir – diz Gabriela Mezzanotti, professora da Unisinos e coordenadora de uma cátedra da ONU que estuda os refugiados.






PORTO ALEGRE COMO DESTINO


Seja nas pequenas ou médias cidades do Interior, a queda nas condições de vida e na oferta de emprego causou, desde o início de 2015, a intensificação do movimento de partida de caribenhos e africanos em direção aos grandes centros urbanos. Se as fontes secaram na Serra, no Planalto e nos vales do Taquari e do Rio Pardo, centenas de imigrantes que decidiram permanecer no país partiram para Porto Alegre e São Paulo. Não por acaso passou a ser comum ver haitianos e senegaleses na capital gaúcha em maior número – hoje, seriam cerca de mil.

– Esses imigrantes vieram para encontrar trabalho, especialmente nas regiões de Caxias do Sul e Passo Fundo. Pelo momento do país, isso tem se revertido. Essa virada ocorreu com mais força no início deste ano. Como estão perdendo o emprego ou não estão mais encontrando oportunidades nesses locais, a tendência é de que procurem os grandes centros. Porto Alegre e Região Metropolitana passam a ser os destinos escolhidos diante dessa nova situação – explica o padre Lauro Bocchi, coordenador do Cibai Migrações.

Em 2011, quando eclodiu a chegada de haitianos e senegaleses, as indústrias alimentícias os buscavam no Acre, por onde entravam no Brasil. Como precisavam da mão de obra, os frigoríficos iam ao encontro dos imigrantes, faziam seleções e os contratavam no ato, providenciando passagens. A indústria alimentícia está concentrada no Interior: gigantes operam em Marau, Lajeado, Encantado, Passo Fundo, Erechim, Garibaldi, Tapejara. Mas também as metalúrgicas, o setor moveleiro e a construção civil, carentes de trabalhadores, passaram a empregar em larga escala os imigrantes nas localidades interioranas.

A conjuntura os levou a habitar essas cidades em considerável número. As comunidades pequenas e médias também eram preferidas pelos estrangeiros pelo custo de vida menor. Pesquisadores ainda indicam outro fenômeno: no Interior, haitianos e senegaleses não são “invisíveis”. Se um grupo de negros desce em um município formado por descendentes europeus, certamente será notado. Por mais que alguns torçam o nariz, sempre haverá alguém para acolhê-los. Nos grandes centros, é maior a possibilidade de passarem despercebidos no meio da multidão, esmagados pela indiferença e pela velocidade do cotidiano.

Essa era a base que mantinha grupos massivos de imigrantes longe de Porto Alegre. Mas, com a crise, o ciclo mudou. No Interior, a construção civil e as indústrias moveleira e metalúrgica demitiram. O setor alimentício, seja de bovinos, suínos ou aves, não chegou a relevantes demissões, mas cessou as contratações. O mercado parou. E a Capital virou destino.

– Houve um esgotamento no Interior. Também ocorreu uma mudança no perfil desse trabalhador. Em Porto Alegre, estão no setor de serviços, nos postos de gasolina, na limpeza em shoppings, são garçons em restaurantes e auxiliares em hotéis. É uma mudança em relação ao que faziam no Interior, onde se concentravam na indústria – explica Bocchi.

A construção civil é a única semelhança da atividade profissional do imigrante no Interior e na Capital. Em qualquer uma das localidades, há caribenhos e africanos trabalhando em obras. É o caso do haitiano Maxonuy Vertü, que protagonizou uma peregrinação de mais de quatro meses em nome de um emprego. Primeiro, levou 22 dias entre a saída do Haiti e a chegada a Rio Branco, intercalando avião, ônibus e caminhadas. Na capital do Acre, agonizou por mais um mês no desumano abrigo de imigrantes em que convivem com o mau cheiro, banheiros inutilizáveis, umidade, colchões rasgados, superlotação, água escassa e doenças.

Como não conseguiu embarcar em nenhum ônibus bancado pelo governo federal, Maxonuy teve de esperar a família enviar dinheiro para comprar uma passagem aérea. Juntou todos os caraminguás e, depois de contatos com amigos, foi parar em Estrela. Ficou por 45 dias na cidade, sem sequer ser chamado para uma entrevista de emprego. Teve de deixar o Vale do Taquari porque estava sem dinheiro e os compatriotas começavam a exigir que ajudasse no racha do aluguel.

Migrou mais uma vez. Em Porto Alegre, se instalou sem custos no abrigo do Centro Vida, na zona norte, aberto por meio de uma parceria entre o Estado e a prefeitura. Lá consegue fazer as três refeições do dia e conta com lugar para dormir, em um alojamento simples, embora mais digno do que a realidade vivenciada por ele e outros milhares de imigrantes que chegam ao Brasil pelo Acre.

Na segunda quinzena de setembro, após um mês e meio vendo o tempo passar no Centro Vida, remoído pela ansiedade e saudade da família, Maxonuy finalmente alcançou o trabalho que o fez rasgar a América do Sul. A partir de contatos da prefeitura da Capital, ele e outros 23 imigrantes, entre senegaleses e haitianos, foram contratados para atuar como auxiliares nas obras da nova ponte do Guaíba.

Trocou a angústia pela labuta no canteiro industrial 1, onde ajuda a concretar estacas pré-moldadas de 32 toneladas que estão sendo cravadas para dar sustentação à futura ligação da Capital com o sul do Estado. Revira massa, carrega lonas, dá marteladas.

– Foram quatro meses sem serviço. Agora tenho meu primeiro emprego. Estou contente e acho que estão contentes comigo – comemora o haitiano.

Se a história de Maxonuy for comparada a de outros compatriotas, é possível concluir que até contou com certa dose de sorte. Dieuquilce Fils está há 13 meses no Brasil, passou por Belo Horizonte e, desde o último semestre, é habitante da Ocupação Progresso, na zona norte de Porto Alegre. Nunca conseguiu emprego. Em uma manhã chuvosa de setembro, pulava poças d’água, atolava o pé no barro das precaríssimas ruas, segurava inutilmente para o alto um guarda-chuva em frangalhos. Admitiu que, para comer, depende da solidariedade dos vizinhos imigrantes. Diariamente, zanza pelas casas para filar algo. Não fosse a caridade dos companheiros, passaria fome. Dieuquilce jamais contou à família que ficou no Haiti sobre a sua condição miserável no Brasil.

– A vida migratória gera muitas expectativas e frustrações. Eles não falam para quem ficou para trás que estão vivendo desse jeito. Ninguém fala – diz Alix Georges, haitiano que vive em Porto Alegre desde 2006 e montou uma ONG de apoio aos imigrantes.

Entre os motivos para manter o descalabro brasileiro em segredo, estão as intenções de não preocupar os parentes e de não se sentirem derrotados.

– Eles chegam em busca de vida digna, mas muitos já não conseguem mais se autossustentar. Acabam entrando em crise existencial. Não conseguem se manter, não enviam dinheiro às famílias, são discriminados e vítimas de situações desumanas. Se desesperam e perguntam: “O que estou fazendo aqui?” – analisa o padre Lauro Bocchi, do Cibai Migrações.

Na Ocupação Progresso, um jovem que está trabalhando em posto de gasolina tecia comentários, mas se negava a revelar seu nome e a ser fotografado. O motivo era o medo de que os consanguíneos tomassem conhecimento da sua realidade.

– Se eu mostro uma foto minha aqui, vão se apavorar. “O que você está fazendo aí, volte agora” – disse o haitiano incógnito, de tronco largo e forte, entoando em voz grave e desesperada, como seria a reação da sua mãe ao vê-lo ali, no meio do barro e de casebres de madeira que parecem estar para desabar a cada lufada.

A quantidade de imigrantes que moram na área é motivo de divergência. Ilisiane Vida, uma brasileira que se apresenta como presidente da Associação dos Moradores da Ocupação Progresso, diz que são 85 caribenhos. Já Getony Gustinvil, líder entre os haitianos, afirma que são em torno de 50. O número de desempregados ambos têm na ponta da língua: cerca de 20.

Na casa de Getony, sob um telhadinho com goteiras, jaz um sofá rasgado e com um braço quebrado. Parado ali, ele explica que não há saneamento básico, água ou energia elétrica. Tudo é arranjado na base do gato. Ele está há dois anos no Brasil, trabalha na limpeza de salas de cinema em Porto Alegre e, um mês atrás, trouxe a mulher para morar na ocupação. Ela se apavorou.

– Quer ir embora. Tenho duas casas no Haiti que são muito melhores do que essa – afirmou, apontando para o seu casebre, um amontoado de madeira cor-de-rosa.

Como moram em bairros marginalizados, são vítimas da violência urbana. A casa dele já foi arrombada e levaram o que havia dentro, incluindo o passaporte. Ele, apesar de tudo, quer ficar no Brasil e busca o apoio de advogados para formalizar a Associação dos Haitianos da Ocupação Progresso.

Getony já teve boa vida no seu país. Era encarregado de cuidar de um mercado público. Foi membro do Lavalas, sigla política do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, derrubado duas vezes. Depois, passou ao Fusion, de oposição a Aristide. Em um contexto de perseguição e conflito político – o Haiti tem mais de 120 partidos –, entendeu que o melhor era deixar o país.

Perto da Progresso, estima-se que 300 haitianos vivem entre os bairros Santa Rosa e Sarandi, onde encontram itens básicos de urbanização, como calçamento, iluminação, saneamento, água e energia elétrica, mas ainda se mantêm vulneráveis quanto à violência urbana e à qualidade das habitações.

A presença numerosa na região ocasionou a abertura de negócios especializados em atender a demanda dos imigrantes. No Santa Rosa, o haitiano Stenio Chery abriu a sua lan house há sete meses. Os compatriotas o visitam e ficam por horas no Facebook, comunicam-se com os familiares. Mas a vida empreendedora de Stenio não vai bem. Seu estabelecimento foi arrombado duas vezes. Levaram três dos seis computadores.

– Está cada vez pior, tudo está mais caro. Estou procurando um jeito de ir embora – revelou Stenio.

Wilfrid Toussaint, soldador de ofício, trabalha como gari em Canoas, na Região Metropolitana. Corre, recolhe o lixo e o atira dentro do caminhão. Haitiano, ele mora no Santa Rosa, em Porto Alegre, nos fundos de uma pet shop. São oito pessoas dividindo três modestas peças, uma delas tomada somente por camas. O aluguel é de R$ 500. O pé direito é baixo, há mofo, sujeira, vidros quebrados. Um lugar lúgubre e insalubre. Wilfrid não reclama.

– Acho que o Brasil é bom. Melhor do que o Haiti – assevera.

No bairro Floresta, nos arrabaldes da Avenida Farrapos, é fácil encontrar haitianos e senegaleses nas ruas Leopoldo Froes, Paraíba e Câncio Gomes. Moram em pensões, prédios decrépitos e até antigos motéis. Nas calçadas, sentam e conversam em pequenos grupos. É uma região de prostituição, cercada por prédios abandonados, quebrados, sujos, pichados, vandalizados.

Embora estejam habitando áreas conflagradas para pagar aluguel mais baixo, não há registro de envolvimento de imigrantes com atividades criminosas. O comportamento é pacífico. Os senegaleses, muçulmanos, sequer podem consumir bebidas alcoólicas.

A prefeitura de Porto Alegre avançou na acolhida aos estrangeiros, mas as sub-habitações, junto ao desemprego, seguem como barreiras difíceis de serem vencidas.

– Os imigrantes que chegam alugam casas ou peças em comunidades de baixa renda. Nesse ponto, ainda temos de avançar. Estamos auxiliando-os a buscar lugares para morar. O déficit habitacional para os porto-alegrenses é de 40 mil unidades. É um setor de muitas dificuldades – avalia Luciano Marcantônio, secretário municipal de Direitos Humanos.

A zona leste da Capital também é núcleo de concentração de imigrantes. Lideranças do Conselho Popular da Lomba do Pinheiro calculam que duas centenas de caribenhos vivem entre as paradas 9 e 19 do bairro, parte deles em áreas de disputa por pontos de tráfico de drogas. Como ocorre na maioria dos recantos, a Igreja assumiu a linha de frente na assistência social. Muitos procuram socorro na Paróquia Santa Clara, pedem ajuda para encontrar emprego e matar a fome. Para deixar uma mensagem de boas-vindas, o frei franciscano João Osmar D’Ávila está organizando, junto com o Conselho Popular, um almoço dominical de confraternização com os haitianos da região. Eles foram consultados para a elaboração do cardápio e estão escolhendo músicas típicas do seu país para animar a festa.

– O nosso desafio aqui na Lomba é garantir boa acolhida. Ir além da entrega da sacola de alimento. Oferecer, pelo menos, aulas de português. Estamos planejando isso – destacou o religioso.

Na humilde hospedaria de Sueli de Souza Prates, no Acesso 8 da comunidade Vila Nova São Carlos, 13 das 15 casas estão alugadas para cerca de 30 haitianos. É o caso de Karina Compadre, que perdeu o emprego na limpeza de um posto de saúde porque enfrentava dificuldades para encontrar alguém que pudesse cuidar da filha Amelia, seis anos. A empresa que a contratou pretendia transferi-la para outros locais de operação, fora da Lomba, e Karina alegou que não sabia como chegar lá. Acabou demitida.



OS NOVOS BRASILEIROS


Fitas multicoloridas pendem do alto de uma estrutura metálica que suspende um aparelho de TV. No chão, um menino ágil se enrola nos tecidos, esconde-se atrás das cores. Sai em disparada, cruza o cercadinho do berçário, sobe a escadinha do escorregador, desce o brinquedo, volta ao topo e, desta vez, desliza de ponta, tocando o chão com a palma das mãos e, depois, o peito. As tranças rastafári, que delineiam um labirinto no couro cabeludo, esvoaçam. O elétrico garoto é Valdes Esace, de apenas um ano e 10 meses, brasileiro de nascimento e filho de imigrantes haitianos que residem em Encantado.

Valdes está matriculado na Escola Municipal de Educação Infantil Navegantes. Como os pais trabalham cedo, é o primeiro a chegar pela manhã. Permanece lá por dois turnos, com garantia de cuidados, recreação, aprendizado e alimentação completa.

A escola fica no bairro Navegantes, o mais humilde de Encantado, onde moram dezenas de famílias de caribenhos. No início do período migratório, em 2011, os homens vieram sozinhos. Depois, passaram a trazer as mulheres, reunir a família e, como são casais jovens, os filhos começaram a vir. A natalidade cresceu, o que se reflete na procura pelos serviços públicos.

Diretora da Navegantes, Marisa Alexandre Gianesini atende a 32 crianças nos dois berçários. Dez delas, quase um terço, nasceram no Brasil, mas são filhas de haitianos. Outros 10 bebês recém-nascidos, todos descendentes de imigrantes caribenhos, estão na fila de espera por vaga. A diretora acredita que conseguirá acolher dois ou três.

– A aceitação deles é normal. As crianças não distinguem cor de pele, são inocentes – diz Marisa, que relatou ter tido apenas um caso de aluna que estava rejeitando os imigrantes, possivelmente por questões raciais.

O relacionamento com os pais haitianos é bom, conforme a diretora. Ela se entusiasma ao relatar que as contribuições espontâneas à escolinha, que melhoram o funcionamento, estão vindo em maior volume dos imigrantes em comparação aos brasileiros:

– A principal fonte de renda extraordinária vem dos haitianos. Eles são gratos aos cuidados com as crianças e são participativos e comprometidos com a educação.

Em Caxias do Sul, 150 filhos de caribenhos e africanos estão matriculados nas escolas municipais. No caso caxiense, a maioria dos estudantes nasceu no Exterior, antes da jornada à América do Sul.

A pequena Encantado ajuda a ilustrar o aumento da natalidade entre os casais da nova imigração. Em meados de setembro, o posto de saúde do bairro Navegantes fazia 22 procedimentos de pré-natal. De todas essas gestantes, 15 eram haitianas.

Os números de Bento Gonçalves também mostram a evolução. Em 2013, apenas três imigrantes tiveram filhos no Hospital Tachinni, que atende pelo SUS. No ano passado, nove nasceram. Até o final de agosto de 2015, 22 haitianas deram à luz.

Dados do Hospital Santa Terezinha, em Encantado, expõem uma agrura: a mortalidade infantil. Na cidade, em 2014, foram feitos cinco partos em imigrantes, mas dois óbitos ocorreram. Neste ano, dos oito nascimentos, um terminou com o falecimento da criança.

– É um índice alto, é preciso verificar os fatores que levaram a isso. A comunicação com as mães é muito difícil. Elas só falam através dos maridos. Não recebem um agente de saúde em casa se o marido não estiver junto – explica Dorli Diehl, coordenadora de enfermagem do Hospital Santa Terezinha.

A postura submissa da mulher haitiana e senegalesa diante do homem dificulta os atendimentos de saúde. Médicos não conseguem entender o que dizem as pacientes. Não compreendem as dores, os sintomas. Os imigrantes não conseguem explicar o que sentem.

– É uma questão cultural. O pré-natal é muito difícil. Elas não entendem português e não falam. São os maridos que fazem o papel de intérpretes. Eu pergunto, ele fala com a mulher e depois traduz para a gente. Abordar temas íntimos fica muito complicado – relata Cátia Isabel Stieven, coordenadora do posto de saúde do Navegantes.

As haitianas, de fato, sabem pouco ou nada de português. Praticamente não saem de casa, exceto para trabalhar. Não interagem com brasileiros. São os homens que vão às ruas e aprendem o idioma.

– Eles têm tanto medo de nós quanto temos dificuldade em atendê-los. E ainda são desconfiados – detalha Dorli.

Em Porto Alegre, o haitiano Alix Georges, que atua como professor de línguas, organiza com a Secretaria da Saúde o ensino básico do francês e do crioulo (idioma falado no Haiti) a um grupo de médicos e enfermeiros que atendem imigrantes. Isso deverá facilitar a comunicação e a qualidade do diagnóstico. Vindos de um país empobrecido, alguns caribenhos desenvolvem quadros mais graves de doenças devido à falta de tratamento. No caso das mulheres, é um agravante para os períodos de gravidez.

Há um ano, quando ZH foi a Marau para a reportagem Os Novos Imigrantes, Fritz Gerald Casseus estava recebendo o seguro- desemprego. A mulher, Eugenia, dedicava- se a cuidar do filho Mazinho, que, então com um ano, era um dos primeiros descendentes de imigrantes haitianos a nascer na região. Doze meses depois, Casseus está recolocado no mercado, contratado pela Fuga Couros, empresa tradicional de Marau. Mazinho cresceu e se comunica bem em português, mas não fala o crioulo, língua do país natal dos seus pais. Apenas Eugenia estava ausente. Em meados de setembro de 2015, encontrava-se hospitalizada em Passo Fundo, nos dias finais de uma gravidez de risco. O nome do segundo herdeiro brasileiro já havia sido escolhido: Mateus.

Ao ter filhos nascidos no Brasil, os imigrantes podem encaminhar o visto de permanência definitiva. Para quem os acompanha de perto, a maternidade está mais vinculada com o desejo de reconstruir a família que ficou para trás. Como se fosse uma compensação. Também são casais jovens, a maioria na faixa entre 25 e 35 anos, “em fase de procriação”, pondera Ivonete Teixeira, voluntária da Paróquia São Pedro, em Encantado.

Especialistas no tema rejeitam discursos de que os caribenhos e africanos estão em número exorbitante no Brasil. E rebatem retóricas agressivas – algumas até xenófobas – de que os imigrantes estão no país sugando empregos e agravando a crise. Um dos dados destacados é que, considerando todas as nacionalidades, vivem no chão brasileiro 1 milhão de estrangeiros. Isso representa 0,48% da população de 210 milhões de habitantes.

– A presença dos imigrantes no Brasil ainda é muito pequena, insignificante. Os principais países receptores têm média de 11% de população estrangeira. Estados Unidos, apesar das críticas, recebe muitos imigrantes. É preciso considerar que o pessoal que está aqui assume trabalhos que os brasileiros não querem assumir. Precisamos dos imigrantes, eles dão uma contribuição valiosa – avalia Gabriela Mezzanotti, professora do curso de Relações Internacionais da Unisinos e coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, iniciativa da ONU para refugiados.

Do lado de fora de um prédio de alvenaria verde, nos arredores da Parada 16 da Lomba do Pinheiro, ouvia-se uma cantoria ritmada por batidas de palmas, pés e alguma outra coisa difícil de identificar, mas que lembrava instrumentos de percussão. Quem passava pela estreita rua na manhã do último domingo, lançava o olhar para o lado de dentro, buscando entender o que acontecia. A curiosidade era ainda mais aguçada porque a altivez da cantoria revelava um idioma estranho, desconhecido dos brasileiros.

Cruzando a entrada, com aquelas portas de correr para cima, facilmente se decifrava o mistério. Um grupo de 30 haitianos, todos moradores da Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, transbordava devoção em um culto evangélico. O recinto estava lotado.

O enraizamento dos imigrantes caribenhos no bairro avançou de tal forma que eles improvisaram a criação de uma igreja para atender suas necessidades. Antes, reuniam-se nas manhãs de domingo na casa de Adius Deissier, conhecido como Frankie. Mas o comparecimento de fiéis aumentou, o lugar ficou pequeno e, há dois meses, alugaram um imóvel para as celebrações.

Na parede frontal, do lado externo, a única identificação está numa faixa que diz, em letras miúdas: Núcleo de Oração Maison de Priere. Na parte interna, não há cruz, imagem ou qualquer outro adorno que lembre uma igreja. Tudo é muito simples. Há apenas um púlpito, onde Frankie se posiciona, comandando a jornada com cantos, estudos bíblicos, leituras e pregações em uma cerimônia que se estende das 9h às 12h, aos domingos. A língua mistura francês e crioulo.

A religiosidade é pilar fundamental da cultura dos novos imigrantes do Brasil. Embora uma parcela dos haitianos seja praticante do vodu (religião de origem africana praticada no Haiti), é na matriz evangélica que eles se expressam abertamente. Frankie enumera os motivos que levaram os caribenhos a improvisarem sua própria igreja:

– Muitos não entendiam nada nos cultos daqui por desconhecer o português. Não conseguiam louvar a Deus. Gostamos de fazer a celebração pela manhã, mas aqui a maioria acontece à noite. Não queremos perder nossos costumes.

O jeito haitiano de orar é diferente do brasileiro, mais comedido. Trajando suas melhores roupas, alguns em vestes sociais, sapatos lustrosos, eles são enérgicos nas três horas de culto. Cantam alto, erguem as mãos ao céu, tocam o peito, fecham os olhos, viram-se de um lado ao outro, batem palmas, o pé vai de encontro ao chão ritmadamente, produzindo sons. Alguns se ajoelham em frente às cadeiras plásticas. Outros baixam a cabeça, amparam o rosto com a palma de uma mão e rezam baixinho, inaudível.

Aquele som irreconhecível para quem passava do lado de fora, mas que lembrava percussão, é fruto da batucada feita pelos fiéis na capa dura das bíblias. Os haitianos chegam a ser performáticos. Sentem-se mais confortáveis em um templo, ainda que improvisado, criado para manter os padrões da sua cultura. Aceitam a presença de brasileiros, mas, ali, prevalecem seus costumes.

Há um momento de catarse quando cada um faz sua oração em voz alta. Eram 30 haitianos rezando energicamente ao mesmo tempo, batendo palmas e pés, uma gritaria de fé. E, no final, recolhem contribuições em moedas ou notas de baixo valor em uma cesta verde para ajudar no aluguel do imóvel.

Em um lugar especial, ao lado de compatriotas, desabafam. Na igreja, foram diversas as reclamações sobre racismo, xenofobia e desinformação dos brasileiros. Eles ficam ofendidos quando ouvem comentários sobre a suposta “falta de comida” no Haiti, o que negam veementemente. Explicam que não passavam fome no seu país, mas que precisaram sair para buscar trabalho e uma vida melhor.

– Uma pessoa que nasce em Porto Alegre não pode ir a Santa Catarina? – questionou um haitiano que pediu a palavra em um intervalo do culto, em resposta aos comentários que escuta rotineiramente.

Além das cerimônias religiosas, os imigrantes participam de confraternizações promovidas por associações de haitianos e senegaleses. A organização em entidades é crescente. Por meio das agremiações, reúnem-se para ouvir a música do seu país, saborear um prato típico, reviver hábitos das suas nações. Eventos como esse já ocorreram em praticamente todas as cidades-destino da nova imigração. Em Lajeado, a banda evangélica Harmony Singers se apresentou em uma praça. Formado por caribenhos que, em maioria, trabalham em frigoríficos, o conjunto toca reggae e compas, o ritmo tradicional do Haiti.

Uma pequena fração dos imigrantes ocupa o tempo livre com a organização social e a política. Renel Simon, haitiano que trabalha na prefeitura de Lajeado no acolhimento dos estrangeiros, está colaborando com a criação e a união de uma série de entidades no Vale do Taquari. O movimento inclui municípios como Estrela, Arroio do Meio, Fazenda Vila Nova e Encantado. Em agosto, Renel esteve no Palácio do Planalto, em Brasília, para apresentar uma pauta com cinco reivindicações: trabalho, habitação, documentação, livre organização e educação.

– Nem todos vão chegar perto das autoridades, mas, com organização, podemos fazer isso e representar os imigrantes – disse.

Afora a religião e os esporádicos eventos culturais de associações, haitianos e senegaleses pouco fazem com o tempo livre. Não estão entrosados com a sociedade a ponto de procurar lazer em lugares públicos. Tampouco há dinheiro sobrando para gastar em divertimento. Costumam ficar em casa, em grupos, passando o tempo em conversas ou falando com a família pela internet.

– Percebemos que eles não têm atividades de lazer. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Alguns chegam a pedir serviço extra no final de semana – conta Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro, em Caxias do Sul.

Recentemente, um grupo de senegaleses empregados na empresa pediu a ajuda de Ana Paula para ter uma atividade remunerada nos finais de semana. Encontraram trabalho aos sábados e domingos em uma terceirizada que faz limpeza em indústrias.

A lembrança de que estão em um país diferente, onde nem todos aprovam a sua presença, é mais um inibidor da circulação natural pelas cidades.

– Não tenho muito dinheiro para gastar. Se você vai numa festa, gasta muito. E aqui é perigoso, temos de nos cuidar, tem muito vagabundo na rua. Meu pai e minha mãe sempre pedem cuidado, lembram que aqui não é o meu país – diz o jovem senegalês Mamadou Wakhou, morador de Caxias do Sul e funcionário da Saccaro há quase dois anos.






FÉ TRAZ A TERRA NATAL PARA PERTO

Do lado de fora de um prédio de alvenaria verde, nos arredores da Parada 16 da Lomba do Pinheiro, ouvia-se uma cantoria ritmada por batidas de palmas, pés e alguma outra coisa difícil de identificar, mas que lembrava instrumentos de percussão. Quem passava pela estreita rua na manhã do último domingo, lançava o olhar para o lado de dentro, buscando entender o que acontecia. A curiosidade era ainda mais aguçada porque a altivez da cantoria revelava um idioma estranho, desconhecido dos brasileiros. Cruzando a entrada, com aquelas portas de correr para cima, facilmente se decifrava o mistério. Um grupo de 30 haitianos, todos moradores da Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, transbordava devoção em um culto evangélico. O recinto estava lotado. O enraizamento dos imigrantes caribenhos no bairro avançou de tal forma que eles improvisaram a criação de uma igreja para atender suas necessidades. Antes, reuniam- se nas manhãs de domingo na casa de Adius Deissier, conhecido como Frankie. Mas o comparecimento de fiéis aumentou, o lugar ficou pequeno e, há dois meses, alugaram um imóvel para as celebrações. Na parede frontal, do lado externo, a única identificação está numa faixa que diz, em letras miúdas: Núcleo de Oração Maison de Priere. Na parte interna, não há cruz, imagem ou qualquer outro adorno que lembre uma igreja. Tudo é muito simples. Há apenas um púlpito, onde Frankie se posiciona, comandando a jornada com cantos, estudos bíblicos, leituras e pregações em uma cerimônia que se estende das 9h às 12h, aos domingos. A língua mistura francês e crioulo. A religiosidade é pilar fundamental da cultura dos novos imigrantes do Brasil. Embora uma parcela dos haitianos seja praticante do vodu (religião de origem africana praticada no Haiti), é na matriz evangélica que eles se expressam abertamente. Frankie enumera os motivos que levaram os caribenhos a improvisarem sua própria igreja: – Muitos não entendiam nada nos cultos daqui por desconhecer o português. Não conseguiam louvar a Deus. Gostamos de fazer a celebração pela manhã, mas aqui a maioria acontece à noite. Não queremos perder nossos costumes. O jeito haitiano de orar é diferente do brasileiro, mais comedido. Trajando suas melhores roupas, alguns em vestes sociais, sapatos lustrosos, eles são enérgicos nas três horas de culto. Cantam alto, erguem as mãos ao céu, tocam o peito, fecham os olhos, viram-se de um lado ao outro, batem palmas, o pé vai de encontro ao chão ritmicamente, produzindo sons. Alguns se ajoelham em frente às cadeiras plásticas. Outros baixam a cabeça, amparam o rosto com a palma de uma mão e rezam baixinho, inaudível. Aquele som irreconhecível para quem passava do lado de fora, mas que lembrava percussão, é fruto da batucada feita pelos fiéis na capa dura das bíblias. Os haitianos chegam a ser performáticos. Sentem-se mais confortáveis em um templo, ainda que improvisado, criado para manter os padrões da sua cultura. Aceitam a presença de brasileiros, mas, ali, prevalecem seus costumes. Há um momento de catarse quando cada um faz sua oração em voz alta. Eram 30 haitianos rezando energicamente ao mesmo tempo, batendo palmas e pés, uma gritaria de fé. E, no final, recolhem contribuições em moedas ou notas de baixo valor em uma cesta verde para ajudar no aluguel do imóvel. Em um lugar especial, ao lado de compatriotas, desabafam. Na igreja, foram diversas as reclamações sobre racismo, xenofobia e desinformação dos brasileiros. Eles ficam ofendidos quando ouvem comentários sobre a suposta “falta de comida” no Haiti, o que negam veementemente. Explicam que nã passavam fome no seu paí, mas que precisaram sair para buscar trabalho e uma vida melhor. –Uma pessoa que nasce em Porto Alegre nã pode ir a Santa Catarina? –questionou um haitiano que pediu a palavra em um intervalo do culto, em resposta aos comentários que escuta rotineiramente. Além das cerimônias religiosas, os imigrantes participam de confraternizações promovidas por associações de haitianos e senegaleses. A organização em entidades crescente. Por meio das agremiações, reúnem-se para ouvir a música do seu país, saborear um prato típico, reviver hábitos das suas naçõs. Eventos como esse já ocorreram em praticamente todas as cidades-destino da nova imigração. Em Lajeado, a banda evangélica Harmony Singers se apresentou em uma praça. Formado por caribenhos que, em maioria, trabalham em frigoríficos, o conjunto toca reggae e compras, o ritmo tradicional do Haiti. Uma pequena fração dos imigrantes ocupa o tempo livre com a organização social e a política. Renel Simon, haitiano que trabalha na prefeitura de Lajeado no acolhimento dos estrangeiros, está colaborando com a criação e a união de uma séie de entidades no Vale do Taquari. O movimento inclui municípios como Estrela, Arroio do Meio, Fazenda Vila Nova e Encantado. Em agosto, Renel esteve no Palácio do Planalto, em Brasília, para apresentar uma pauta com cinco reivindicações: trabalho, habitação, documentação, livre organização e educação. –Nem todos vã chegar perto das autoridades, mas, com organização, podemos fazer isso e representar os imigrantes –disse. Afora a religião e os esporádicos eventos culturais de associações, haitianos e senegaleses pouco fazem com o tempo livre. Não estão entrosados com a sociedade a ponto de procurar lazer em lugares públicos. Tampouco há dinheiro sobrando para gastar em divertimento. Costumam ficar em casa, em grupos, passando o tempo em conversas ou falando com a família pela internet. –Percebemos que eles nã tê atividades de lazer. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Alguns chegam a pedir serviço extra no final de semana –conta Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro, em Caxias do Sul. Recentemente, um grupo de senegaleses empregados na empresa pediu a ajuda de Ana Paula para ter uma atividade remunerada nos finais de semana. Encontraram trabalho aos sábados e domingos em uma terceirizada que faz limpeza em indústrias. A lembrança de que estão em um país diferente, onde nem todos aprovam a sua presença, é mais um inibidor da circulação natural pelas cidades. –Não  tenho muito dinheiro para gastar. Se você vai numa festa, gasta muito. E aqui é perigoso, temos de nos cuidar, tem muito vagabundo na rua. Meu pai e minha mã sempre pedem cuidado, lembram que aqui não éo meu país –diz o jovem senegalê Mamadou Wakhou, morador de Caxias do Sul e funcionário da Saccaro há quase dois anos.





SONHOS REAFIRMADOS

BABU GAI Natural da Gâmbia, pequeno país encravado no Senegal, Babu Gai já era famoso em Erechim em 2014, quando foi encontrado pela reportagem de ZH. Em um ano, muita coisa mudou. Para melhor. A clientela cresceu, a alfaiataria de Babu é cada vez mais procurada para a confecção de vestidos de casamento e formatura. Também costura os trajes dos corais de Erechim e região. Em ascensão, o africano ampliou o seu estabelecimento, consolidado como ponto de encontro entre imigrantes e brasileiros.

O dinheiro se multiplicou e, além da reforma, conseguiu comprar um carro. A vida avançou no campo pessoal. Babu casou-se com uma senegalesa, com certo grau de parentesco, o que é comum em sua tradição. O matrimônio foi feito à distância: Babu no Brasil e a mulher, no Senegal. Mas, até o final do ano, ela deverá estar em Erechim.

Vaidoso, carismático e bem vestido, o alfaiate conta que teve alguns relacionamentos com brasileiras, mas não deu certo. As culturas se chocaram e o africano, muçulmano, não encontrou as características que idealiza em uma mulher. Por isso, o seu futuro será com uma pessoa de origem semelhante.

De opiniões fundamentadas, com a capacidade de discorrer longamente sobre os assuntos, Babu fica com o semblante mais sério ao falar sobre a situação dos imigrantes no Brasil. Está preocupado com a escalada de xenofobia.

– Os imigrantes brasileiros estão felizes no Exterior. Por que não podemos nos sentir assim aqui no Brasil? – pergunta.

Em outro nível de adaptação à vida no Brasil, onde está há cinco anos, Babu é dos poucos imigrantes que participam da vida social da cidade em que mora. É procurado por diversos imigrantes que precisam de todo o tipo de ajuda, sobretudo para conseguir emprego. Recentemente, ajudou o senegalês Mustafa Dien a encontrar trabalho na limpeza de uma padaria. Mas Dien, em razão da alta do dólar, ainda não conseguiu cumprir sua meta ao vir para o Brasil: enviar dinheiro para sua família na África.





SONHOS REAFIRMADOS


Depois de terminar o noviciado em Marau, o haitiano Jean Daniel François partiu para Caxias do Sul no final de 2014. Com estudo e moradia garantidos pela congregação dos freis capuchinhos, concentra-se exclusivamente nos planos de se tornar padre. Em outubro do ano passado, iniciou a preparação para o vestibular de Filosofia na Universidade de Caxias do Sul. Foi aprovado, mesmo sem a adaptação perfeita ao português.

– Fiz muita leitura. Isso ajudou a melhorar meu conhecimento da língua. Acompanho as aulas sem problemas – conta ele, já no segundo semestre do curso.

Jean Daniel se empolga ao lembrar que foi bem recebido em sala de aula. Os colegas o chamam para fazer trabalhos em grupo. Não tem reclamações. O haitiano planeja se graduar em dezembro de 2017. Na etapa seguinte, voltará ao Haiti para estudar teologia e, enfim, tornar-se padre. Irá exercer o sacerdócio no local em que a congregação determinar. Talvez fique no seu país, mas não descarta o retorno ao Brasil.

Por enquanto, na condição de frei, faz celebrações religiosas aos finais de semana na Igreja Santa Rita de Cássia, em Caxias do Sul. Aos sábados, participa de atividades recreativas e religiosas com grupos de jovens da comunidade carente. Jean Daniel se considera um sujeito feliz. Plenamente.

Nem todas as peças do tabuleiro foram derrubadas pela crise econômica do Brasil. No interior do Estado, ZH reencontrou, pouco mais de um ano depois, personagens da reportagem Os Novos Imigrantes, publicada em agosto de 2014. Ao menos três deles conquistaram melhoras em suas vidas. São pessoas que venceram, mesmo com todos os prognósticos apontando o contrário, superando dificuldades como a redução do emprego, o dólar alto, a distância da família, o preconceito e a desconfiança.

Em meados de 2014, Jean Edrice Nelzy, também conhecido como Natan, tinha vergonha da casa em que vivia, em Lajeado. Era uma peça nos fundos de um casarão velho, com aspecto abandonado, rodeada por entulhos e em região alagadiça. A umidade era implacável. Agora, continua trabalhando como pedreiro em uma obra do Minha Casa Minha Vida, o salário não mudou, mas, com disciplina, conseguiu uma casa melhor.

Deixou de pagar R$ 250 pela moradia que lhe trazia vergonha e mudou para outra, com aluguel de R$ 450. A nova casa fica na mesma Rua Borges de Medeiros, mas tem dois quartos – a anterior tinha apenas um –, o que permite que receba visitas e até hospede imigrantes por alguns dias.

Quando conversou com a reportagem, Natan andava feliz porque, finalmente, depois de quatro anos, juntou o dinheiro, com a ajuda de um empréstimo, para comprar a passagem aérea ao Haiti. Iria visitar a família pela primeira vez. Às vésperas do embarque, estava ansioso para reencontrar a mãe, a quem diz amar muito por ter sido pai ao mesmo tempo. Também conheceria a segunda filha, de quatro anos, que sequer havia nascido quando deixou o Haiti para trás.