Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

domingo, 27 de dezembro de 2015

CONGRESSO QUER VER O FIM DA INTERNET LIVRE NO BRASIL



ZERO HORA 27 de dezembro de 2015 | N° 18397


NELSON MATTOS*




Não gosto de escrever sobre política, pois sou, afinal de contas, um especialista em tecnologia. Porém, seria irresponsabilidade não abordar os projetos de lei absurdos sendo discutidos no Congresso brasileiro. Por serem tantos, é bem provável que algum seja aprovado, pondo fim à internet livre como a conhecemos, com conteúdo da mídia social sendo criminalizado, cidadãos sendo monitorados pelo governo e políticos proibindo que erros, falcatruas e corrupções sejam expostos na internet.

Sancionado em abril de 2014, o Marco Civil da Internet garante a liberdade de expressão, o direito de saber, a proteção da privacidade individual e a neutralidade da rede. Com 100 milhões de brasileiros online usufruindo dos direitos garantidos no Marco Civil, a internet tornou-se, na visão do Congresso de 2015, uma ameaça, pois cada vez mais brasileiros a usam para expor atos ilícitos, reclamar e exigir mudanças.

A legislação em trâmite é uma reação direta ao crescente poder da voz do povo na web. Sentindo-se expostos e ameaçados, alguns políticos tentam restringir a liberdade de expressão, o direito de saber e a privacidade individual, criando uma infinidade de leis que limitam o acesso à internet, sobretudo pela população mais jovem (a mais ativa na internet), censurando e criminalizando a publicação de praticamente qualquer vídeo, fotografia e conteúdo não alinhado com sua ideologia política.

O que mudou de 2014 para 2015? Um dos maiores adversários do Marco Civil, o então deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) lutou contra a legislação até ela chegar à mesa de Dilma – forte adepta do Marco Civil – e ser assinada. Um ano depois, com Dilma enfraquecida e Cunha agora presidente de uma Câmara muito mais conservadora, a internet é vista de forma totalmente diferente pela maioria do Legislativo. Além de autor, Cunha apoia inúmeras leis que acabam com garantias do Marco Civil e criminalizam o uso das mídias sociais. Para continuar operando na obscuridade, o Congresso tenta impedir que a população use livremente a internet.

O Projeto de Lei (PL) 215 altera o Marco Civil, permitindo a remoção de conteúdo da web associado a qualquer pessoa. Permitir que indivíduos apaguem dados constrangedores, o chamado “direito ao esquecimento”, aprovado pela União Europeia, é aceitável. Segundo o Marco Civil, se publicarem mentiras a seu respeito, o conteúdo pode ser retirado por ordem judicial, de forma a não eliminar a liberdade de expressão ou permitir que informações importantes sejam escondidas do público. Na União Europeia, cidadãos comuns – não as figuras públicas – podem solicitar a desindexação de certos conteúdos sobre seu passado dos resultados de busca. Porém, os dados não são removidos da web. A versão brasileira permitiria que figuras públicas solicitassem, sem ordem judicial, não só a desindexação de conteúdo que considerem difamatório, prejudicial ou meramente desatualizado, mas também exijam que seja totalmente deletado da web. Com ordem judicial, a polícia teria acesso ao endereço e CPF do autor da publicação.

A lei proposta permitirá que políticos censurem a mídia social e a internet praticamente ao seu bel-prazer e também possam penalizar a pessoa que postou. Você não quer saber o nome dos envolvidos no escândalo da Petrobras? Se esse PL for aprovado, será difícil obter essa informação na web.

Com emendas de aliados de Eduardo Cunha, o PL 215 foi apelidado de “O Espião”, pois obriga internautas a compartilharem dados pessoais (CPF, endereço completo e telefone) e provedores de serviço como Google e Facebook a armazenar e fornecer tais dados quando solicitados. Uma versão anterior chegou ao absurdo de permitir que qualquer “autoridade” tivesse acesso aos dados sem ordem judicial! Hum... e as garantias individuais dos internautas? Será que os brasileiros continuarão se manifestando abertamente na internet, criticando políticos, exigindo o fim da corrupção ou simplesmente expressando sua opinião? Acho difícil. Infelizmente, com o apoio de Eduardo Cunha, o PL 215 teve sua tramitação acelerada, já foi aprovado nas comissões da Câmara e logo será votado em plenário.

Se esse não for aprovado, há tantos outros projetos de lei, que será difícil que nenhum o seja. O PL 1.879 determina que provedores que publicam conteúdo, como Facebook, YouTube, WhatsApp, mantenham registro dos usuários, inclusive nome e CPF. Já o PL 2.712 obriga provedores a remover, por solicitação de qualquer um, referências sobre sua pessoa na internet, nas condições que especificar. De autoria do próprio Cunha, o PL 7.881, de 2014, obriga a remoção de links dos mecanismos de busca que façam referência a dados irrelevantes ou defasados sobre alguém. Chega ao absurdo de permitir que a remoção seja exigida sem ordem judicial e por qualquer pessoa, não necessariamente a “prejudicada”.

Prestes a ser votado, o PL 1.676 tornaria passível de pena de até dois anos de prisão filmar, fotografar ou gravar a voz de alguém sem autorização expressa. Mesmo selfies seriam potencialmente criminosas, se aparecer alguém na foto além de você. A pena pode chegar a seis anos se a cena for publicada na internet.

O PL 1.547 e o PL 1.589 tornam mais rigorosa a punição dos crimes contra a honra cometidos mediante disponibilização de conteúdo na internet. Como se não bastasse, o deputado Cláudio Cajado (DEM-­BA), apoiado por Eduardo Cunha, relatou que prepara um PL para identificar e punir quem crie páginas ofensivas e difamatórias contra parlamentares na internet, bem como provedores que hospedem tal conteúdo. Assim, se você “ofender a honra” de um parlamentar com piadinhas no Facebook, tanto você quanto o Facebook estarão sujeitos a processos penais e cíveis. Tem cabimento? Pois é, segundo Cajado, a proposta pode ser votada em regime de urgência pela Câmara.

De autoria da bancada mais conservadora, o PL 2.390 cria um registro central de internautas para proibir crianças e adolescentes de acessar conteúdo impróprio. Só que a lei pode ser utilizada para impedir que jovens brasileiros – justamente os usuários mais ativos – acessem as principais plataformas sociais, como YouTube e Twitter. Ou seja, as ferramentas de movimentação e exposição na internet.

Alguns parlamentares chegam ao cúmulo de pensarem em PLs que exijam que empresas da internet criem clínicas de tratamento para viciados em internet. Empresas de cigarro são obrigadas a ter clínicas para fumantes? E as de bebida? Decididamente, a internet ainda é vista por muitos como um “mal” a ser “controlado”.

É óbvio que, quanto maior o número de PLs sendo gerados, maior a probabilidade de aprovação de um projeto que faça extinguir as garantias à liberdade de expressão, ao direito de saber, à privacidade e ao anonimato dos internautas brasileiros estabelecidas no Marco Civil. Políticos que buscam esconder fatos veem a internet como uma ameaça e estão fazendo de tudo para criminalizá-la.

Chegou a hora de a geração digital do Brasil se levantar em apoio à internet livre e suas garantias no Marco Civil. Se não se mexer logo, terá uma surpresa muito maior do que a recente suspensão do WhatsApp.


*Doutor em Ciências da Computação, gaúcho, residente no Silicon Valley, Califórnia


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - SOMBRAS DO TOTALITARISMO TOMAM CONTA DO CONGRESSO NACIONAL, UMA CASA QUE DEVERIA REPRESENTAR O POVO E DEFENDER A LIBERDADE E A DEMOCRACIA. URGE UMA IMEDIATA REAÇÃO DA POPULAÇÃO, DOS INTERNAUTAS E DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO EM APOIO À LIBERDADE, À DEMOCRACIA E À JUSTIÇA...

domingo, 20 de dezembro de 2015

NAS REDES SOCIAIS, FALA-SE MUITO, MAS POUCO SE ESCUTA



ZERO HORA 20 de dezembro de 2015 | N° 18391

PAULA MINOZZO


COM A PALAVRA


“Nas redes sociais, fala-se muito, mas pouco se escuta”


Os debates que cercam as novas mídias, com frequência, são sustentados por um certo deslumbre com a tecnologia. A psicóloga norte-americana Pamela Rutledge muda os rumos da discussão e foca o seu olhar e suas pesquisas no aspecto comportamental de um mundo conectado e multimídia. Diretora do Media Psychology Research Center (Centro de Pesquisa de Mídia e Psicologia), uma organização sem fins lucrativos, ela se propõe a entender e estudar o impacto das diferentes mídias e a maneira como as pessoas se relacionam, emocionam-se e aprendem por meio das novas tecnologias. Pamela é procurada pelos maiores e mais reconhecidos veículos de comunicação, como the New York Times, CNN e The Wall Street Journal, para analisar fatos do mundo digital. Em entrevista por Skype, ela defende educação e “etiqueta digital” para convivermos melhor nas cada vez mais polarizadas redes sociais – que, na sua visão, não tornaram as pessoas mais agressivas: – Apenas trouxeram à tona comportamentos que não víamos antes.

Sites de veículos de comunicação já pensam em restringir comentários nas notícias por causa da agressividade de quem comenta. Por que chegamos a esse ponto?

Há uma certa pretensão em achar que, de alguma forma, as pessoas raivosas surgiram com as redes sociais. Como se todos estivessem comportados, sentados no sofá de casa e, com o surgimento das redes sociais, tenham começado a se comportar mal – se você achar, claro, que certos comentários podem ser considerados mau comportamento. O que as redes sociais fizeram foi trazer à superfície todos os tipos de comportamentos que antes não víamos. Particularmente, momentos de agitação política, econômica ou social geram ansiedade, e as pessoas reagem de maneira muito emotiva.

O Brasil enfrenta uma crise política e econômica. O noticiário e as redes sociais tornaram-se pesados. Algumas pessoas criam até mesmo grupos para boas notícias. Esse momento de turbulência pode gerar mais raiva e ansiedade?

Durante um período de crise, a sensação de medo toma conta. Um dos comportamentos das pessoas quando sentem medo é expressar raiva e procurar outros que compartilham os mesmos sentimentos, para que elas não se sintam sozinhas. Ironicamente, isso traz uma sensação de segurança. Além disso, a raiva é expressada de formas distintas com base em cada cultura. Não sei muito bem como é com os brasileiros. Os britânicos, por exemplo, expressam suas emoções nas redes sociais de maneira diferente se comparado com os americanos. Os britânicos são mais contidos. Eu acho interessante quando dizem que a mídia traz apenas notícias ruins. Pois bem, são as notícias ruins que capturam a atenção do público, pois desafiam nossa sensação de sobrevivência e segurança. Notícias boas seriam um luxo. Em outras palavras, se há perigo, precisamos saber, para garantir a própria sobrevivência.

Com frequência, a imprensa noticia casos em que celebridades sofrem ataques racistas nas redes sociais. Tornar esses episódios públicos seria uma maneira de combatê-los? Até onde vai a liberdade de expressão?

Seria necessário primeiro fazer algumas ponderações sobre liberdade de expressão. Alguns diriam que é um direito pleno e incontestável e outros que há limites para esse direito. Aqui, tornou-se uma tendência falar em “politicamente correto”. Há uma forma de censura social que não está escrita em qualquer lugar. Você pode dizer algo na internet que não é necessariamente ilegal, mas pode ter outras consequências, como perder o emprego. Não há resposta definitiva. Eu sou sempre muito cautelosa quando há de se decidir quem define o que é correto. Quando alguém tem o poder de fazer isso, é muito difícil de reverter. Como americanos, consideramos liberdade de expressão um pilar. Há diversos argumentos para defender certas restrições, mas limitar o que alguém pode falar é muito sério. Ao mesmo tempo, os jornais são seduzidos por tópicos sensacionalistas, porque provavelmente terão mais leitura e audiência. Acontece que, quando se começa a enxergar muitas coisas negativas na imprensa tradicional, seja violência, comentários racistas, ou o que seja, coisas que ganham muita atenção, o público começa a pensar que isso é muito mais comum do que verdadeiramente é. É um problema quando esse tipo de atitude ou comportamento começa a parecer normal, como se fosse padrão. A imprensa precisaria lidar com isso, contextualizando a frequência desses comentários. É preciso dar a informação de que isso é uma minoria que faz. Temos que decidir, como sociedade, quais comentários queremos encorajar, e por isso, precisamos abordar esses acontecimentos de maneira responsável, e não simplesmente indagar: “Meu deus, o que vamos fazer?”.

E como seria a abordagem ideal? No caso mais recente aqui no Brasil, a atriz alvo dos comentários racistas aproveitou o espaço para falar com outras pessoas que sofrem com o preconceito, por exemplo.

O que ela fez foi muito bom, dizer que ela reconhece que o racismo existe, sem levar a questão para o lado pessoal. Em outras palavras, o que ela essencialmente fez foi dizer que o problema está em quem posta os comentários e é algo que precisamos mudar, seja acionando a polícia, ou qualquer que seja a solução, dependendo de como cada sistema funciona. Não vamos celebrar o fato de que esses comentários existam, mas precisamos apontar: sim, há pessoas que ainda fazem isso e é altamente destrutivo para a nossa sociedade. Deve-se ter cuidado na hora de abordar essas situações, porque, geralmente, tratar de maneira punitiva não funciona, apenas reprime. É necessária uma mudança de comportamento, e isso pode ser feito desarmando os agressivos, e não criando mais raiva.

E como desarmar os agressivos?

Você tira o poder de quem se comporta de maneira negativa apenas para chamar atenção ou gerar mais ansiedade nos outros. A intenção deve ser de tornar claro que o comportamento dessas pessoas é indesejável em uma sociedade. Elas estão querendo mostrar poder, então, que se tire esse poder. Elas querem ser ouvidas, reconhecidas. Querem fazer os outros sentirem-se mal. Comentários negativos são uma maneira de fazer bullying. E não é aconselhável ceder ou brigar com quem faz a agressão e a intimidação, porque isso valida o papel deles. A maneira de desarmar os agressivos é mostrar como esse comportamento é inaceitável, mas não necessariamente travar uma batalha direta com eles.

As pessoas se tornam mais valentes nas redes sociais?

As pessoas geralmente ficam mais corajosas quando estão em grupo e quando não estão face a face. Isso se aplica à fofoca e às redes sociais, só que no mundo digital, tudo se torna público. Esquecemos que esse tipo de comportamento sempre aconteceu, mas não tínhamos acesso ao que os outros falavam com tanta instantaneidade.

Tomando conhecimento desses comportamentos, estamos já em um movimento contrário, de mudança de mentalidade nas redes sociais? Há diversas campanhas, sejam de organizações ou espontâneas, para combater isso.

Tudo que fazemos nas redes sociais reflete como as nossas mentes mudaram em todos os cenários. Não nos tornamos pessoas diferentes nas redes sociais, o que acontece é que você toma consciência de outras pessoas que têm a mesma opinião. Desse modo, as pessoas podem se juntar e mostrar como isso é importante. Mas o que eu mais vejo nas redes sociais são as pessoas falando, mas não tendo a paciência para escutar. Elas não querem entender o ponto de vista dos outros, querem apenas tomar um partido, seja esse positivo ou não. E quando queremos mudar a opinião de alguém, não podemos nos referir a elas de uma maneira que se sintam na defensiva. É preciso ter a disposição para falar “essa é a minha opinião, qual é a sua? Vamos trabalhar juntos” sem precisar desistir do que você apoia e acredita. Ao mesmo tempo, você precisa abrir mão do posicionamento dogmático para que o outro lado não se sinta ameaçado. Muitas pessoas que uma vez já foram marginalizadas sentem a necessidade de fazer com que o outro lado se sinta mal pelo que foi feito. Vingança é uma maneira muito destrutiva para alcançar qualquer solução.

Os frustrados são os mais agressivos nas redes sociais?

Pessoas frustradas tendem a ser mais agressivas em qualquer ambiente. Frustração e raiva levam à agressividade. Por algum motivo, começamos a culpar as redes sociais, mas na verdade, a pergunta a ser feita é: por que essas pessoas estão com tanta raiva? Quais são as percepções que alimentam o racismo? Vamos olhar para o que causa esse medo e esse ódio.

Ainda temos pouca noção sobre a responsabilidade que vem com o uso das redes sociais? Da dimensão que qualquer conteúdo postado pode tomar?

Não sei se eu usaria a palavra responsabilidade. Eu acredito que as pessoas não entendem o poder das mídias e tecnologias sociais. E sim, elas são muito poderosas, de pessoa em pessoa a informação pode se espalhar, e nem sempre de maneira correta, como acontece naquela brincadeira do telefone sem fio. As pessoas estão soltas nas redes sociais sem qualquer tipo de educação digital. É um problema para nossas informações pessoais e para as nossas relações pessoais, já que as regras comportamentais que aprendemos online têm um equivalente offline. Passamos muito tempo ensinando comportamento moral para as crianças, mas não pensamos em ensinar as mesmas coisas no ambiente da internet. É fácil de compreender se alguém, em uma festa, decidisse ir embora porque encontrou alguém que não gosta. Mas no Facebook, continuamos a seguir pessoas desagradáveis, que nos causam raiva. Podemos estabelecer limites e deixar de seguir aquela pessoa, seja saindo do Facebook ou desfazendo a amizade. Há diversas alternativas, mas ainda não aprendemos que o comportamento nas situações cotidianas tem um equivalente para o mundo digital.

Restringir nosso feed apenas com o que é agradável não colabora para a criação de uma bolha? Não precisamos reconhecer outras opiniões para não nos apegarmos a um ponto de vista único?

É preciso fazer uma distinção entre as duas coisas. Eu não vou a festas para me informar. Eu acesso fontes de notícias. É a mesma coisa: se formos esperar que as notícias cheguem pelo Facebook, estamos tomando más decisões sobre as fontes que escolhemos para nos informar. O Facebook é um ambiente social, é para saber o que os amigos estão fazendo e compartilhar informações pessoais. As pessoas escolhem os amigos que têm mais ou menos as mesmas crenças, é um comportamento normal. Se você quiser se informar, é melhor escolher uma fonte de notícias em vez de ir a uma festa.

Mas as pessoas cada vez mais buscam suas notícias no Facebook, já que pelo feed elas podem ter tudo ao mesmo tempo: as fotos dos amigos e os links para as informações.

Acredito que essa tendência vai durar até um jeito melhor surgir. Voltamos a falar de educação midiática e digital. Avaliar as fontes das notícias e a qualidade da informação que chega até o usuário. A melhor forma de lidar com todas essas questões é ainda cedo, quando crianças. Isso inclui como encontrar e curar informações, como discernir o posicionamento do produtor do conteúdo. O simples fato de alguém ter curado algum tipo de informação significa que ele utilizou critérios próprios que considerou importantes. Entender como funciona a dinâmica da informação é essencial, deveria fazer parte do currículo escolar.

O escritor português José Saramago (1922 - 2010) disse em entrevista que, com o Twitter, estamos a um passo do grunhido. A psicóloga e pesquisadora Sherry Turkle também questiona nossa habilidade de conversar uns com os outros depois das tecnologias móveis. Mudamos nossa maneira de interagir?

Não concordo com nenhum deles. Evidências mostram que as mídias sociais são usadas de formas distintas. Ou seja, de acordo com a proximidade e intimidade dos relacionamentos. Não falo com a minha filha postando no seu mural do Facebook, por exemplo. Nos ligamos, ou mandamos mensagens de texto, o que é algo muito mais pessoal. As mídias sociais nos permitem conectar com outras pessoas que estavam fora do nosso círculo de influência, como um amigo da escola primária. Com o Facebook, conectamos com as pessoas com as quais queremos validar alguma experiência que fez parte das nossas vidas. E isso é muito significativo. Não significa que aquela pessoa é seu novo melhor amigo, mas aquele contato tem muito valor. Para as pessoas que consideramos próximas, como amigos ou família, iremos sempre tentar conversar e nos reunir pessoalmente. Trocar informações e mensagens superficiais faz com que compreendamos melhor a vida dos outros. O discurso de que por causa de 140 caracteres não sabemos mais nos comunicar não considera as maneiras diferentes com que usamos as tecnologias. As redes sociais não estão nos tornando mais fúteis ou insensíveis, pelo contrário: nos tornaram mais conscientes sobre o resto do mundo.

O Facebook disponibilizou um avatar com as cores da França após os ataques em Paris. No Brasil, começou uma grande discussão nas redes sociais, pois alguns diziam que se prestava mais atenção aos acontecimentos de fora do que a tragédia de Mariana, no interior de Minas Gerais. Como lidamos com tragédias nas redes sociais?

Tragédias, seja um ataque terrorista ou um tufão, são sempre assustadoras. É algo não planejado, então, a primeira coisa que as pessoas fazem é decidir o quão relevante é aquilo para elas. Instintivamente, elas questionam se estão em perigo. Uma das razões para Paris receber tanta atenção é porque todos conhecem a cidade, seja por filmes, viagens, ou pela sua reputação. Paris é uma cidade icônica. No mesmo período, algumas tragédias similares ocorreram no Oriente Médio, mas esses ataques terroristas não receberam atenção nos Estados Unidos, em parte, porque não tínhamos como nos relacionar com aquilo. É por isso que vimos muita empatia por Paris, porque temos essa conexão emocional, como se todos nós conhecêssemos a cidade.

É a conexão emocional que faz com que a gente publique qualquer coisa nas redes. Isso explicaria por que algumas pessoas ficam tristes se não recebem curtidas nos seus posts?

Você simplesmente gosta de receber curtidas ou vai ficar triste se não recebê-las? Uma coisa não implica a outra. Nos sentimos bem com a validação social. Ativa neurotransmissores no nosso cérebro. Conexão social é muito importante para a nossa sobrevivência. Há pessoas que dependem demasiadamente de validação externa? Que talvez se importem com algumas coisas de uma maneira que não é saudável? Sim, mas, primeiro de tudo, isso é uma minoria. Segundo, esse comportamento vai se manifestar nos demais aspectos da vida.

As selfies são uma expressão desse comportamento que busca validação social?

Selfies são muito importantes para nós, porque, pela primeira vez, podemos controlar nossa própria imagem. Nos permitem tirar a pressão que envolve fazer um retrato e nos dão o controle de compartilhar nossa imagem como preferirmos. Uma parte disso também é conectar com os outros, porque nada é tão poderoso quanto uma imagem. Quando se vê a imagem de alguém, mesmo que estática, há uma quantidade grande de informação sobre aquela pessoa. Consegue-se enxergar dentro dos seus olhos. É possível ver o que tem ao fundo. Eu poderia enviar texto e demoraria quase o mesmo tempo, mas se eu enviar uma selfie de algum lugar, vou passar a emoção, o cenário, o contexto, como estava o dia.

E a obsessão por registrar? Críticos e artistas já se manifestaram contra essa mania de gravar um show inteiro, por exemplo.

Esse é um ponto de vista bastante elitista. Ninguém tira fotos durante todos os momentos do show, o que as pessoas fazem é documentar algo que é importante para elas, para que, logo mais, elas possam reviver aqueles momentos. Se você é um crítico de música, você vai a muitos desses eventos. O público, não.

Sobre o fenômeno dos YouTubers: por que eles se tornaram tão influentes? Alguns são pessoas comuns que compartilham a própria vida e ganham legiões de fãs.

As pessoas, inerentemente, são interessadas pela vida dos outros. Assistir à vida de alguém é interessante. Por ser uma pessoa verdadeira, você começa a se engajar com aquilo, criar uma relação com aquele pequeno mundo. O problema para a maior parte dos YouTubers é que é preciso disposição para dedicar tempo para manter uma presença no YouTube. Eles podem se tornar muito populares e, em alguns casos, muito lucrativos, mas não é duradouro. Não é algo construído em cima de uma habilidade, por isso não é duradouro. E, quando começa a entrar muito dinheiro, começam os questionamentos sobre a autenticidade. Com as celebridades, ainda que queiramos ser como elas, compreendemos que, se a Angelina Jolie está usando um relógio em uma propaganda, alguém esta pagando muito dinheiro para que ela faça isso. Em um vídeo do YouTube, essa pessoa pode usar quatro relógios, mas vai dizer de qual deles ela mais gosta, e então você supõe que aquilo é autêntico. O próximo passo do YouTube serão os questionamentos sobre a autenticidade. É como o caso da menina na Austrália que desistiu das redes sociais depois de revelar que era paga para usar todas aquelas coisas (Essena O’Neill, a modelo e celebridade no Instagram que mostrou a verdade por trás das fotos que publicava).

Para dar certo na internet, é preciso ser autêntico?

A internet sempre vai se alimentar e prosperar com o que é autêntico. Mas algumas pessoas podem perder essa autenticidade se não tomarem cuidado. A partir de certo ponto, se elas viram apenas garotos-propaganda, é importante que digam: “Estou abrindo essa lata de sopa porque enviaram para mim, mas vou provar para ver se realmente gosto”. É essa autenticidade que vai fazer o poder permanecer.

Essa busca pela autenticidade fez com que uso do Photoshop e softwares de edição fossem malvistos? Quando uma celebridade é pega usando, recebe muitas críticas nas redes sociais.

Ninguém gosta de ser enganado, e agora temos a chance de ver o mundo como ele é, sem precisar de marqueteiros. É por isso que fotos de celebridade sem maquiagem ou no supermercado têm tanta visibilidade, porque as pessoas querem ver o que é verdadeiro.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O QUE VOCÊ NUNCA DEVE PERGUNTAR A UM AMERICANO




ZERO HORA 16 de dezembro de 2015 | N° 18387


DAVID COIMBRA



Se tem algo que aprendi sobre os americanos, nesse tempo morando no norte do mundo, é o seguinte:

Nunca, NUNCA!, pergunte a um americano qual é a sua idade.

Eles ficam irritados.

Mas preciso ressaltar que os americanos são extremamente gentis e educados.


Você está no supermercado, empurrando o carrinho. Aí, quando faz a curva para entrar num corredor, lá está um americano agachado, lendo o rótulo das latas de massa de tomate. Você para, esperando que ele saia da frente. Então, ele percebe que você está lá. E se levanta de um salto, consternado, implorando:

– Sorry! Sorry!

É assim o tempo todo. É desculpa, é com licença, é good morning, chego a ficar constrangido com tanta consideração. Hey, my friend, não precisa pedir tanta desculpa, só estou aqui com meu carrinho, não tem estresse de aguardar um pouco, pode pegar tua lata de massa de tomate descansado!

Claro que não digo isso. Devolvo o sorriso, digo no problem e sigo em frente.

Outro detalhe: em nenhum momento fui tratado de forma diferente por ser estrangeiro. Ao contrário: eles são muito solidários e prestativos, tentam fazer com que você se sinta à vontade e se integre à comunidade.

Porém...

Ah, porém...

Nada de se intrometer na vida deles. Qualquer abordagem pessoal pode causar estranheza, quando não uma reação emburrada:

– Isso não é da sua conta.

Não quer dizer que ele vá romper com você, nada disso. Mas os limites estão bem claros.

Os americanos prezam muito a sua privacidade, a sua individualidade. Por isso, respeitam muito a privacidade e a individualidade dos outros.

Percebi isso em grau ainda mais acentuado no Japão. Uma vez, estava numa fila de entrada para algum lugar de Tóquio e vi que uma moça à minha frente deixou cair a echarpe que usava. O japonês atrás dela colheu a echarpe do chão. A moça, no entanto, continuava de costas para ele, e não havia reparado que a echarpe caíra. O japonês ficou com a mão estendida, aflito, esperando que ela se virasse. Não a chamou, não a cutucou, nem sequer avançou um passo para lhe chamar a atenção. Esperou, apenas. Depois de alguns segundos em que eu já me sentia angustiado, ela enfim se virou e ele lhe deu a echarpe.

Um japonês jamais toca em outra pessoa, nem para cumprimentar. Um japonês não fala alto, nem ao celular. Seria uma invasão do espaço alheio.

Lembrei de outro exemplo. Os ingleses. Em Londres, você está de pé, no metrô lotado. Um inglês está parado a um palmo do seu nariz. E ele consegue NÃO OLHAR para você. É como se você não existisse, mas ele provavelmente está sentindo o seu hálito de menta, de tão próximos que vocês estão. É uma técnica que eles têm. Porque até o olhar pode ser invasivo.

Esse respeito à individualidade é uma sofisticada demonstração de consciência democrática. Porque a democracia, em essência, é isso: é o respeito aos direitos do indivíduo. Se o indivíduo está dentro da lei, não há governo ou multidão maior do que ele. Essa é a forma de alcançar liberdade e igualdade. O indivíduo é o rei. E não há súditos, porque todos são livres. E não há corte, porque todos são iguais.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

IMPRECISÃO E GENERALIZAÇÃO NA WEB


JORNAL DO COMÉRCIO 08/10/2015



Juliano César de Lazari




A internet é um meio privilegiado para a pesquisa e para a defesa de princípios e propostas. Mas em muitos casos é usada para disseminar ideias superficiais. Noções sem alicerces precisos podem se tornar fontes problemáticas na construção de valores e de referenciais.

Uma análise atenta de opiniões e diálogos publicados em várias plataformas virtuais nos leva à identificação da presença frequente de críticas irrefletidas a ideias e a pessoas. Em muitos debates percebe-se a preocupação com a orgulhosa conquista da vitória, isto é: procura-se vencer a discussão apoiando-se em noções ou fatos muitas vezes fora de contexto e convenientes para que uma ideia seja avaliada como correta. Existem exceções. Contudo, é necessário condenar o hábito de generalizar partindo de fatos sem análise séria e sem descrição dos detalhes: a "popular" generalização apressada.

Um posicionamento expresso de forma categórica será verossímil se apresentar embasamento em fatos e em raciocínios concisos. As informações disponíveis na rede devem ser rigorosamente analisadas, comparadas e avaliadas. Ao criticar correntes de pensamento, instituições ou ideias é necessário apresentar fundamentações detalhadas, citar as fontes e examinar o contexto em que o fato ocorreu e no qual as interpretações foram construídas. Caso contrário, corre-se o risco de cometer erros e causar injustiças de difícil reparação.

Os espaços virtuais devem ser utilizados para o debate racional, responsável e permeado por esforços rumo à construção do diálogo honesto em que se respeita a alteridade. É preciso mobilizar os ensinos Básico e Superior para educar e promover o espírito analítico, a objetividade e a prudência.
Professor e mestre em Filosofia

domingo, 4 de outubro de 2015

SONHOS PARTIDOS




ZERO HORA 04 de outubro de 2015 | N° 18314


CARLOS ROLLSING


OS NOVOS ROSTOS DA IMIGRAÇÃO, apresentados há um ano em reportagem de ZH, passam por desilusão. Precisam enfrentar a disputa por trabalho e o preconceito. Poucas são as histórias de sucesso. Muitos querem retornar a seus países



Haitianos que migraram ao Rio Grande do Sul em busca do eldorado, as famílias de Diufene, Oline e Sajele têm mais em comum do que a nacionalidade: estão decididos a ir embora do Brasil, seja para tentar sucesso em outro país ou retornar à terra natal. A crise corroeu o sonho brasileiro.

Caribenhos e africanos chegaram esperançosos e conseguiram viver bons dias até o aprofundamento da instabilidade econômica e política. Agora, são atormentados por desemprego, salário baixo, dólar alto, sub-habitação e marginalização.

O último levantamento divulgado pelo Ministério da Justiça, publicado em agosto passado, indica que, desde 2011, quando houve a explosão migratória, ingressaram no Brasil 45.607 haitianos. Parcela significativa já foi embora.

– Ao mesmo tempo em que recebemos imigrantes, muitos estão saindo do Brasil. Cerca de 10 mil haitianos deixaram o país. Não necessariamente para voltar ao Haiti, mas para procurar outras nações. Muitos têm ido ao Chile. Eles saem pelas dificuldades que encontram e, principalmente, pela frustração que experimentam na vinda ao Brasil – analisa o padre Lauro Bocchi, diretor do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações), instituição vinculada à Paróquia da Pompeia, em Porto Alegre.

Diufene Dumerjuste mora em Bento Gonçalves, na Serra, há mais de três anos. Em fevereiro de 2014, trouxe do Haiti a mulher, Beatrice, e a filha Joice. Ela jamais conseguiu emprego. Em abril deste ano, tiveram a segunda filha: Mari Claire Angelica, uma brasileira.

Trabalhando em uma metalúrgica, Diufene recebe R$ 1,2 mil ao mês. Seu salário será rebaixado até o final do ano porque a empresa fez um acordo de redução de jornada, decorrência da crise. Com o que ganha, paga R$ 600 de aluguel – a metade da sua remuneração total –, sem contar gastos com água, luz, alimentação e vestuário da família de quatro pessoas.

– Não levamos uma vida boa, bastante gente quer ir embora. Pedi para ser demitido até janeiro. Com o dinheiro da rescisão, voltarei ao Haiti. Mas não me prometeram nada – lamenta Diufene, que, em uma gélida noite de setembro em Bento Gonçalves, recebia em sua casa dois compatriotas que chegaram há meses ao país, mas seguem desempregados.

Com a alta da moeda americana, o imigrante não consegue mais mandar dinheiro e ajudar a família que ficou para trás – são necessários muitos reais para comprar poucos dólares. E esse sempre foi um dos principais objetivos da aventura no Brasil.

Em Marau, Oline Desruisseaux e Sajele Rodrigue também querem fazer as malas. Oline trabalha em uma padaria, na área de serviços gerais. Sua irmã, Nadesh, chegou ao Brasil só em novembro de 2014. Foi contratada para trabalhar em um frigorífico, em Mato Castelhano, distante poucos quilômetros de Marau. A mulher de Sajele era empregada do mesmo abatedouro de suínos.

Em agosto, a indústria fechou as portas. Segundo o Sindicato da Alimentação de Tapejara, que atende a região, problemas de higiene e de segurança do trabalho estiveram entre as motivações. Os funcionários foram mandados para casa, sem receber nenhum valor rescisório. Por questões burocráticas, sequer conseguiram encaminhar o seguro-desemprego.

Dificuldades de comunicação deixam os haitianos perdidos, não sabem a quem recorrer para cobrar o frigorífico. Essa é outra face cruel da imigração: ingênuos e alheios às labirínticas leis brasileiras, são frequentemente ludibriados.

Oline, com seu salário de R$ 1 mil, sustenta a irmã e a filha Ana e paga aluguel, luz, água e alimentação.

– Passei dois anos aqui, pensei que tudo melhoraria, mas só piorou. Não posso ficar mais. Antes, precisava de R$ 230 para mandar US$ 100 ao Haiti. Hoje, preciso de R$ 440 para os mesmos US$ 100. Decidi voltar. Agora é juntar dinheiro para a passagem, que está custando R$ 5 mil – diz Oline.

Há pouco mais de um ano, quando ZH esteve em Marau para produzir a reportagem Os Novos Imigrantes, Oline tinha a pequena Ana nos braços, recém-nascida, e depositava esperança no sonho brasileiro. Tudo mudou radicalmente em apenas uma porção de meses.

Sajele está desempregado, faz bicos de pedreiro, mas poucas oportunidades surgem com a desaceleração da construção civil. Insistentemente, aponta para um Uno cor de vinho estacionado próximo do centro de Marau e expõe o seu plano.

– Aquele auto é meu. Se me derem R$ 4 mil, vendo. Primeiro, mando minha mulher de volta ao Haiti. Depois, dou um jeito de comprar a minha passagem.

Levantamentos do Cibai Migrações e da seção gaúcha de Mobilidade Humana da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) indicam que 13,7 mil imigrantes caribenhos e africanos estão vivendo no Rio Grande do Sul, a maioria na Serra, no Planalto e nos vales do Taquari e do Rio Pardo. Cerca de 9 mil são haitianos, 4 mil são senegaleses e os demais se dividem entre naturais de República Dominicana, Gâmbia, Gana e Bangladesh, além de alguns outros.

– Avaliamos que, entre os imigrantes, o desemprego está em 20% – diz o padre João Cimadon, coordenador do setor de Mobilidade Humana da CNBB no Estado.

Ainda são estimativas, mas as organizações ligadas à Igreja são as que contabilizam números mais próximos da realidade. Continua sendo com as instituições religiosas o principal vínculo dos imigrantes, seja no momento da acolhida inicial ou no pedido de ajuda rotineiro. O poder público apenas começa um trabalho de envolvimento. Os efeitos da crise também aparecem em dados do Sine no mês de setembro.

– Hoje temos 2.246 imigrantes de todas as nacionalidades cadastrados nas agências do Sine do Estado, mas sabemos que a maioria é de haitianos e senegaleses. Significa dizer que eles estão na informalidade ou desempregados – explica Juarez Santinon, presidente da Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS).

Na rotina dos municípios, a virada no boom migratório é perceptível. Em Bento Gonçalves, viviam 1,7 mil haitianos até 2014. Neste ano, o número baixou para mil, conforme a prefeitura, amparada por dados da Polícia Federal. Para a associação de imigrantes local e a Paróquia Santo Antônio, 1,3 mil ainda estariam na cidade.

Com o desemprego, centenas partiram. Segurando listas nas mãos, Ronald Dorval, presidente da Associação de Haitianos de Bento Gonçalves, diz que 350 imigrantes do seu país estão desempregados por lá. Dados da prefeitura também preocupam: cerca de cem caribenhos – o que pode significar até 10% dos que estão no município – recebem Bolsa Família. É um indicativo de miséria, já que é preciso ter renda per capita mensal de até R$ 154 para obter o benefício.

– Acredito que a redução de imigrantes passa pela frustração deles, até de exercer um serviço pesado para o qual não foram capacitados. Muitos têm formação superior, a gente vê arquitetos e advogados pintando paredes ou na base da indústria. Hoje, existe um movimento de saída da cidade. Para essas pessoas, realmente acredito que o sonho não se tornou realidade – diz Guilherme Pasin (PP), prefeito de Bento Gonçalves.

Em Erechim, no norte do Estado, o número de imigrantes senegaleses foi reduzido de uma centena para 60 entre 2014 e 2015, conforme a Associação de Apoio aos Africanos em Erechim e Região (Asafer).

– Dos que ficaram, um grupo considerável está desempregado e foi para a informalidade – diz o professor e sociólogo Dirceu Benincá, que se uniu à direção da Asafer.

A adesão dos imigrantes às vendas ambulantes é crescente. Em Caxias do Sul, nos arredores da Praça Dante Alighieri, contígua à imponente catedral, estão amontoados pelas calçadas. Em seus tabuleiros ou caixas de papelão, expõem meias, toucas, luvas, relógios, cintos, carteiras, anéis reluzentes e uma enormidade de bijuterias.

Em uma tarde fria de setembro, somente em uma quadra da Avenida Júlio de Castilhos, em frente à praça, havia 13 ambulantes senegaleses e haitianos. Eles disputam a preferência dos clientes com os brasileiros que também dependem da atividade. Por vezes, homens se aproximam, cochicham algo aos ambulantes. Depois, desaparecem.

Enquanto isso, outros imigrantes passam o tempo, mexem no celular, conversam em rodas, fitam o horizonte vazio.

Nas pacatas e organizadas cidades de descendentes europeus, um movimento de marginalização dos estrangeiros se torna cada vez mais preponderante. Quem anda pelas simpáticas ruas de Encantado, de apenas 22 mil habitantes, no Vale do Taquari, não imagina que ali tenha uma periferia. Mas há. E os haitianos e dominicanos que trabalham no frigorífico Cosuel, em maioria, moram lá. É o bairro Navegantes, uma baixada alagadiça, com casebres de madeira, sujeira e entulho nas ruas. Também há tráfico de drogas e violência. Em Bento Gonçalves, os haitianos moram massivamente nos bairros Eucaliptos e Conceição, ambos periféricos. É o caso de Mistrale Lozin:

– Moramos aos montes em uma casa. Já morei com nove. E também estão ocorrendo muitos roubos. Um amigo nosso saiu de casa para trabalhar e, quando voltou, tinham arrombado e levado notebook, documentos e mais um dinheiro.

Se os imigrantes foram alcançados pelo desemprego, crise e violência, ainda há faces positivas da presença deles no Brasil. Os empresários estão satisfeitos com o comprometimento dos forasteiros. Assumem serviços pesados que, até então, estavam vagos devido ao desinteresse do brasileiro que conquistou qualificação e ascensão financeira.

– Tivemos redução de pessoal em 2015, mas os chefes da fábrica sempre procuraram preservar o emprego dos 15 senegaleses que estão conosco. Gostam do trabalho deles, são habilidosos – diz Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro Móveis, de Caxias do Sul.

A maioria ainda está trabalhando, muitos deles empenhando parte do seu dinheiro para auxiliar com alimento e moradia os compatriotas desempregados. Os problemas econômicos do Brasil não farão cessar o fluxo migratório.

– É um processo silencioso e lento. É provável que, com a crise, haja diminuição, mas não vai terminar. Por isso, não falo em onda migratória: é um movimento contínuo, com altos e baixos. Se o Brasil quer ser líder regional na política e na economia, terá de se abrir – diz Gabriela Mezzanotti, professora da Unisinos e coordenadora de uma cátedra da ONU que estuda os refugiados.






PORTO ALEGRE COMO DESTINO


Seja nas pequenas ou médias cidades do Interior, a queda nas condições de vida e na oferta de emprego causou, desde o início de 2015, a intensificação do movimento de partida de caribenhos e africanos em direção aos grandes centros urbanos. Se as fontes secaram na Serra, no Planalto e nos vales do Taquari e do Rio Pardo, centenas de imigrantes que decidiram permanecer no país partiram para Porto Alegre e São Paulo. Não por acaso passou a ser comum ver haitianos e senegaleses na capital gaúcha em maior número – hoje, seriam cerca de mil.

– Esses imigrantes vieram para encontrar trabalho, especialmente nas regiões de Caxias do Sul e Passo Fundo. Pelo momento do país, isso tem se revertido. Essa virada ocorreu com mais força no início deste ano. Como estão perdendo o emprego ou não estão mais encontrando oportunidades nesses locais, a tendência é de que procurem os grandes centros. Porto Alegre e Região Metropolitana passam a ser os destinos escolhidos diante dessa nova situação – explica o padre Lauro Bocchi, coordenador do Cibai Migrações.

Em 2011, quando eclodiu a chegada de haitianos e senegaleses, as indústrias alimentícias os buscavam no Acre, por onde entravam no Brasil. Como precisavam da mão de obra, os frigoríficos iam ao encontro dos imigrantes, faziam seleções e os contratavam no ato, providenciando passagens. A indústria alimentícia está concentrada no Interior: gigantes operam em Marau, Lajeado, Encantado, Passo Fundo, Erechim, Garibaldi, Tapejara. Mas também as metalúrgicas, o setor moveleiro e a construção civil, carentes de trabalhadores, passaram a empregar em larga escala os imigrantes nas localidades interioranas.

A conjuntura os levou a habitar essas cidades em considerável número. As comunidades pequenas e médias também eram preferidas pelos estrangeiros pelo custo de vida menor. Pesquisadores ainda indicam outro fenômeno: no Interior, haitianos e senegaleses não são “invisíveis”. Se um grupo de negros desce em um município formado por descendentes europeus, certamente será notado. Por mais que alguns torçam o nariz, sempre haverá alguém para acolhê-los. Nos grandes centros, é maior a possibilidade de passarem despercebidos no meio da multidão, esmagados pela indiferença e pela velocidade do cotidiano.

Essa era a base que mantinha grupos massivos de imigrantes longe de Porto Alegre. Mas, com a crise, o ciclo mudou. No Interior, a construção civil e as indústrias moveleira e metalúrgica demitiram. O setor alimentício, seja de bovinos, suínos ou aves, não chegou a relevantes demissões, mas cessou as contratações. O mercado parou. E a Capital virou destino.

– Houve um esgotamento no Interior. Também ocorreu uma mudança no perfil desse trabalhador. Em Porto Alegre, estão no setor de serviços, nos postos de gasolina, na limpeza em shoppings, são garçons em restaurantes e auxiliares em hotéis. É uma mudança em relação ao que faziam no Interior, onde se concentravam na indústria – explica Bocchi.

A construção civil é a única semelhança da atividade profissional do imigrante no Interior e na Capital. Em qualquer uma das localidades, há caribenhos e africanos trabalhando em obras. É o caso do haitiano Maxonuy Vertü, que protagonizou uma peregrinação de mais de quatro meses em nome de um emprego. Primeiro, levou 22 dias entre a saída do Haiti e a chegada a Rio Branco, intercalando avião, ônibus e caminhadas. Na capital do Acre, agonizou por mais um mês no desumano abrigo de imigrantes em que convivem com o mau cheiro, banheiros inutilizáveis, umidade, colchões rasgados, superlotação, água escassa e doenças.

Como não conseguiu embarcar em nenhum ônibus bancado pelo governo federal, Maxonuy teve de esperar a família enviar dinheiro para comprar uma passagem aérea. Juntou todos os caraminguás e, depois de contatos com amigos, foi parar em Estrela. Ficou por 45 dias na cidade, sem sequer ser chamado para uma entrevista de emprego. Teve de deixar o Vale do Taquari porque estava sem dinheiro e os compatriotas começavam a exigir que ajudasse no racha do aluguel.

Migrou mais uma vez. Em Porto Alegre, se instalou sem custos no abrigo do Centro Vida, na zona norte, aberto por meio de uma parceria entre o Estado e a prefeitura. Lá consegue fazer as três refeições do dia e conta com lugar para dormir, em um alojamento simples, embora mais digno do que a realidade vivenciada por ele e outros milhares de imigrantes que chegam ao Brasil pelo Acre.

Na segunda quinzena de setembro, após um mês e meio vendo o tempo passar no Centro Vida, remoído pela ansiedade e saudade da família, Maxonuy finalmente alcançou o trabalho que o fez rasgar a América do Sul. A partir de contatos da prefeitura da Capital, ele e outros 23 imigrantes, entre senegaleses e haitianos, foram contratados para atuar como auxiliares nas obras da nova ponte do Guaíba.

Trocou a angústia pela labuta no canteiro industrial 1, onde ajuda a concretar estacas pré-moldadas de 32 toneladas que estão sendo cravadas para dar sustentação à futura ligação da Capital com o sul do Estado. Revira massa, carrega lonas, dá marteladas.

– Foram quatro meses sem serviço. Agora tenho meu primeiro emprego. Estou contente e acho que estão contentes comigo – comemora o haitiano.

Se a história de Maxonuy for comparada a de outros compatriotas, é possível concluir que até contou com certa dose de sorte. Dieuquilce Fils está há 13 meses no Brasil, passou por Belo Horizonte e, desde o último semestre, é habitante da Ocupação Progresso, na zona norte de Porto Alegre. Nunca conseguiu emprego. Em uma manhã chuvosa de setembro, pulava poças d’água, atolava o pé no barro das precaríssimas ruas, segurava inutilmente para o alto um guarda-chuva em frangalhos. Admitiu que, para comer, depende da solidariedade dos vizinhos imigrantes. Diariamente, zanza pelas casas para filar algo. Não fosse a caridade dos companheiros, passaria fome. Dieuquilce jamais contou à família que ficou no Haiti sobre a sua condição miserável no Brasil.

– A vida migratória gera muitas expectativas e frustrações. Eles não falam para quem ficou para trás que estão vivendo desse jeito. Ninguém fala – diz Alix Georges, haitiano que vive em Porto Alegre desde 2006 e montou uma ONG de apoio aos imigrantes.

Entre os motivos para manter o descalabro brasileiro em segredo, estão as intenções de não preocupar os parentes e de não se sentirem derrotados.

– Eles chegam em busca de vida digna, mas muitos já não conseguem mais se autossustentar. Acabam entrando em crise existencial. Não conseguem se manter, não enviam dinheiro às famílias, são discriminados e vítimas de situações desumanas. Se desesperam e perguntam: “O que estou fazendo aqui?” – analisa o padre Lauro Bocchi, do Cibai Migrações.

Na Ocupação Progresso, um jovem que está trabalhando em posto de gasolina tecia comentários, mas se negava a revelar seu nome e a ser fotografado. O motivo era o medo de que os consanguíneos tomassem conhecimento da sua realidade.

– Se eu mostro uma foto minha aqui, vão se apavorar. “O que você está fazendo aí, volte agora” – disse o haitiano incógnito, de tronco largo e forte, entoando em voz grave e desesperada, como seria a reação da sua mãe ao vê-lo ali, no meio do barro e de casebres de madeira que parecem estar para desabar a cada lufada.

A quantidade de imigrantes que moram na área é motivo de divergência. Ilisiane Vida, uma brasileira que se apresenta como presidente da Associação dos Moradores da Ocupação Progresso, diz que são 85 caribenhos. Já Getony Gustinvil, líder entre os haitianos, afirma que são em torno de 50. O número de desempregados ambos têm na ponta da língua: cerca de 20.

Na casa de Getony, sob um telhadinho com goteiras, jaz um sofá rasgado e com um braço quebrado. Parado ali, ele explica que não há saneamento básico, água ou energia elétrica. Tudo é arranjado na base do gato. Ele está há dois anos no Brasil, trabalha na limpeza de salas de cinema em Porto Alegre e, um mês atrás, trouxe a mulher para morar na ocupação. Ela se apavorou.

– Quer ir embora. Tenho duas casas no Haiti que são muito melhores do que essa – afirmou, apontando para o seu casebre, um amontoado de madeira cor-de-rosa.

Como moram em bairros marginalizados, são vítimas da violência urbana. A casa dele já foi arrombada e levaram o que havia dentro, incluindo o passaporte. Ele, apesar de tudo, quer ficar no Brasil e busca o apoio de advogados para formalizar a Associação dos Haitianos da Ocupação Progresso.

Getony já teve boa vida no seu país. Era encarregado de cuidar de um mercado público. Foi membro do Lavalas, sigla política do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, derrubado duas vezes. Depois, passou ao Fusion, de oposição a Aristide. Em um contexto de perseguição e conflito político – o Haiti tem mais de 120 partidos –, entendeu que o melhor era deixar o país.

Perto da Progresso, estima-se que 300 haitianos vivem entre os bairros Santa Rosa e Sarandi, onde encontram itens básicos de urbanização, como calçamento, iluminação, saneamento, água e energia elétrica, mas ainda se mantêm vulneráveis quanto à violência urbana e à qualidade das habitações.

A presença numerosa na região ocasionou a abertura de negócios especializados em atender a demanda dos imigrantes. No Santa Rosa, o haitiano Stenio Chery abriu a sua lan house há sete meses. Os compatriotas o visitam e ficam por horas no Facebook, comunicam-se com os familiares. Mas a vida empreendedora de Stenio não vai bem. Seu estabelecimento foi arrombado duas vezes. Levaram três dos seis computadores.

– Está cada vez pior, tudo está mais caro. Estou procurando um jeito de ir embora – revelou Stenio.

Wilfrid Toussaint, soldador de ofício, trabalha como gari em Canoas, na Região Metropolitana. Corre, recolhe o lixo e o atira dentro do caminhão. Haitiano, ele mora no Santa Rosa, em Porto Alegre, nos fundos de uma pet shop. São oito pessoas dividindo três modestas peças, uma delas tomada somente por camas. O aluguel é de R$ 500. O pé direito é baixo, há mofo, sujeira, vidros quebrados. Um lugar lúgubre e insalubre. Wilfrid não reclama.

– Acho que o Brasil é bom. Melhor do que o Haiti – assevera.

No bairro Floresta, nos arrabaldes da Avenida Farrapos, é fácil encontrar haitianos e senegaleses nas ruas Leopoldo Froes, Paraíba e Câncio Gomes. Moram em pensões, prédios decrépitos e até antigos motéis. Nas calçadas, sentam e conversam em pequenos grupos. É uma região de prostituição, cercada por prédios abandonados, quebrados, sujos, pichados, vandalizados.

Embora estejam habitando áreas conflagradas para pagar aluguel mais baixo, não há registro de envolvimento de imigrantes com atividades criminosas. O comportamento é pacífico. Os senegaleses, muçulmanos, sequer podem consumir bebidas alcoólicas.

A prefeitura de Porto Alegre avançou na acolhida aos estrangeiros, mas as sub-habitações, junto ao desemprego, seguem como barreiras difíceis de serem vencidas.

– Os imigrantes que chegam alugam casas ou peças em comunidades de baixa renda. Nesse ponto, ainda temos de avançar. Estamos auxiliando-os a buscar lugares para morar. O déficit habitacional para os porto-alegrenses é de 40 mil unidades. É um setor de muitas dificuldades – avalia Luciano Marcantônio, secretário municipal de Direitos Humanos.

A zona leste da Capital também é núcleo de concentração de imigrantes. Lideranças do Conselho Popular da Lomba do Pinheiro calculam que duas centenas de caribenhos vivem entre as paradas 9 e 19 do bairro, parte deles em áreas de disputa por pontos de tráfico de drogas. Como ocorre na maioria dos recantos, a Igreja assumiu a linha de frente na assistência social. Muitos procuram socorro na Paróquia Santa Clara, pedem ajuda para encontrar emprego e matar a fome. Para deixar uma mensagem de boas-vindas, o frei franciscano João Osmar D’Ávila está organizando, junto com o Conselho Popular, um almoço dominical de confraternização com os haitianos da região. Eles foram consultados para a elaboração do cardápio e estão escolhendo músicas típicas do seu país para animar a festa.

– O nosso desafio aqui na Lomba é garantir boa acolhida. Ir além da entrega da sacola de alimento. Oferecer, pelo menos, aulas de português. Estamos planejando isso – destacou o religioso.

Na humilde hospedaria de Sueli de Souza Prates, no Acesso 8 da comunidade Vila Nova São Carlos, 13 das 15 casas estão alugadas para cerca de 30 haitianos. É o caso de Karina Compadre, que perdeu o emprego na limpeza de um posto de saúde porque enfrentava dificuldades para encontrar alguém que pudesse cuidar da filha Amelia, seis anos. A empresa que a contratou pretendia transferi-la para outros locais de operação, fora da Lomba, e Karina alegou que não sabia como chegar lá. Acabou demitida.



OS NOVOS BRASILEIROS


Fitas multicoloridas pendem do alto de uma estrutura metálica que suspende um aparelho de TV. No chão, um menino ágil se enrola nos tecidos, esconde-se atrás das cores. Sai em disparada, cruza o cercadinho do berçário, sobe a escadinha do escorregador, desce o brinquedo, volta ao topo e, desta vez, desliza de ponta, tocando o chão com a palma das mãos e, depois, o peito. As tranças rastafári, que delineiam um labirinto no couro cabeludo, esvoaçam. O elétrico garoto é Valdes Esace, de apenas um ano e 10 meses, brasileiro de nascimento e filho de imigrantes haitianos que residem em Encantado.

Valdes está matriculado na Escola Municipal de Educação Infantil Navegantes. Como os pais trabalham cedo, é o primeiro a chegar pela manhã. Permanece lá por dois turnos, com garantia de cuidados, recreação, aprendizado e alimentação completa.

A escola fica no bairro Navegantes, o mais humilde de Encantado, onde moram dezenas de famílias de caribenhos. No início do período migratório, em 2011, os homens vieram sozinhos. Depois, passaram a trazer as mulheres, reunir a família e, como são casais jovens, os filhos começaram a vir. A natalidade cresceu, o que se reflete na procura pelos serviços públicos.

Diretora da Navegantes, Marisa Alexandre Gianesini atende a 32 crianças nos dois berçários. Dez delas, quase um terço, nasceram no Brasil, mas são filhas de haitianos. Outros 10 bebês recém-nascidos, todos descendentes de imigrantes caribenhos, estão na fila de espera por vaga. A diretora acredita que conseguirá acolher dois ou três.

– A aceitação deles é normal. As crianças não distinguem cor de pele, são inocentes – diz Marisa, que relatou ter tido apenas um caso de aluna que estava rejeitando os imigrantes, possivelmente por questões raciais.

O relacionamento com os pais haitianos é bom, conforme a diretora. Ela se entusiasma ao relatar que as contribuições espontâneas à escolinha, que melhoram o funcionamento, estão vindo em maior volume dos imigrantes em comparação aos brasileiros:

– A principal fonte de renda extraordinária vem dos haitianos. Eles são gratos aos cuidados com as crianças e são participativos e comprometidos com a educação.

Em Caxias do Sul, 150 filhos de caribenhos e africanos estão matriculados nas escolas municipais. No caso caxiense, a maioria dos estudantes nasceu no Exterior, antes da jornada à América do Sul.

A pequena Encantado ajuda a ilustrar o aumento da natalidade entre os casais da nova imigração. Em meados de setembro, o posto de saúde do bairro Navegantes fazia 22 procedimentos de pré-natal. De todas essas gestantes, 15 eram haitianas.

Os números de Bento Gonçalves também mostram a evolução. Em 2013, apenas três imigrantes tiveram filhos no Hospital Tachinni, que atende pelo SUS. No ano passado, nove nasceram. Até o final de agosto de 2015, 22 haitianas deram à luz.

Dados do Hospital Santa Terezinha, em Encantado, expõem uma agrura: a mortalidade infantil. Na cidade, em 2014, foram feitos cinco partos em imigrantes, mas dois óbitos ocorreram. Neste ano, dos oito nascimentos, um terminou com o falecimento da criança.

– É um índice alto, é preciso verificar os fatores que levaram a isso. A comunicação com as mães é muito difícil. Elas só falam através dos maridos. Não recebem um agente de saúde em casa se o marido não estiver junto – explica Dorli Diehl, coordenadora de enfermagem do Hospital Santa Terezinha.

A postura submissa da mulher haitiana e senegalesa diante do homem dificulta os atendimentos de saúde. Médicos não conseguem entender o que dizem as pacientes. Não compreendem as dores, os sintomas. Os imigrantes não conseguem explicar o que sentem.

– É uma questão cultural. O pré-natal é muito difícil. Elas não entendem português e não falam. São os maridos que fazem o papel de intérpretes. Eu pergunto, ele fala com a mulher e depois traduz para a gente. Abordar temas íntimos fica muito complicado – relata Cátia Isabel Stieven, coordenadora do posto de saúde do Navegantes.

As haitianas, de fato, sabem pouco ou nada de português. Praticamente não saem de casa, exceto para trabalhar. Não interagem com brasileiros. São os homens que vão às ruas e aprendem o idioma.

– Eles têm tanto medo de nós quanto temos dificuldade em atendê-los. E ainda são desconfiados – detalha Dorli.

Em Porto Alegre, o haitiano Alix Georges, que atua como professor de línguas, organiza com a Secretaria da Saúde o ensino básico do francês e do crioulo (idioma falado no Haiti) a um grupo de médicos e enfermeiros que atendem imigrantes. Isso deverá facilitar a comunicação e a qualidade do diagnóstico. Vindos de um país empobrecido, alguns caribenhos desenvolvem quadros mais graves de doenças devido à falta de tratamento. No caso das mulheres, é um agravante para os períodos de gravidez.

Há um ano, quando ZH foi a Marau para a reportagem Os Novos Imigrantes, Fritz Gerald Casseus estava recebendo o seguro- desemprego. A mulher, Eugenia, dedicava- se a cuidar do filho Mazinho, que, então com um ano, era um dos primeiros descendentes de imigrantes haitianos a nascer na região. Doze meses depois, Casseus está recolocado no mercado, contratado pela Fuga Couros, empresa tradicional de Marau. Mazinho cresceu e se comunica bem em português, mas não fala o crioulo, língua do país natal dos seus pais. Apenas Eugenia estava ausente. Em meados de setembro de 2015, encontrava-se hospitalizada em Passo Fundo, nos dias finais de uma gravidez de risco. O nome do segundo herdeiro brasileiro já havia sido escolhido: Mateus.

Ao ter filhos nascidos no Brasil, os imigrantes podem encaminhar o visto de permanência definitiva. Para quem os acompanha de perto, a maternidade está mais vinculada com o desejo de reconstruir a família que ficou para trás. Como se fosse uma compensação. Também são casais jovens, a maioria na faixa entre 25 e 35 anos, “em fase de procriação”, pondera Ivonete Teixeira, voluntária da Paróquia São Pedro, em Encantado.

Especialistas no tema rejeitam discursos de que os caribenhos e africanos estão em número exorbitante no Brasil. E rebatem retóricas agressivas – algumas até xenófobas – de que os imigrantes estão no país sugando empregos e agravando a crise. Um dos dados destacados é que, considerando todas as nacionalidades, vivem no chão brasileiro 1 milhão de estrangeiros. Isso representa 0,48% da população de 210 milhões de habitantes.

– A presença dos imigrantes no Brasil ainda é muito pequena, insignificante. Os principais países receptores têm média de 11% de população estrangeira. Estados Unidos, apesar das críticas, recebe muitos imigrantes. É preciso considerar que o pessoal que está aqui assume trabalhos que os brasileiros não querem assumir. Precisamos dos imigrantes, eles dão uma contribuição valiosa – avalia Gabriela Mezzanotti, professora do curso de Relações Internacionais da Unisinos e coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, iniciativa da ONU para refugiados.

Do lado de fora de um prédio de alvenaria verde, nos arredores da Parada 16 da Lomba do Pinheiro, ouvia-se uma cantoria ritmada por batidas de palmas, pés e alguma outra coisa difícil de identificar, mas que lembrava instrumentos de percussão. Quem passava pela estreita rua na manhã do último domingo, lançava o olhar para o lado de dentro, buscando entender o que acontecia. A curiosidade era ainda mais aguçada porque a altivez da cantoria revelava um idioma estranho, desconhecido dos brasileiros.

Cruzando a entrada, com aquelas portas de correr para cima, facilmente se decifrava o mistério. Um grupo de 30 haitianos, todos moradores da Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, transbordava devoção em um culto evangélico. O recinto estava lotado.

O enraizamento dos imigrantes caribenhos no bairro avançou de tal forma que eles improvisaram a criação de uma igreja para atender suas necessidades. Antes, reuniam-se nas manhãs de domingo na casa de Adius Deissier, conhecido como Frankie. Mas o comparecimento de fiéis aumentou, o lugar ficou pequeno e, há dois meses, alugaram um imóvel para as celebrações.

Na parede frontal, do lado externo, a única identificação está numa faixa que diz, em letras miúdas: Núcleo de Oração Maison de Priere. Na parte interna, não há cruz, imagem ou qualquer outro adorno que lembre uma igreja. Tudo é muito simples. Há apenas um púlpito, onde Frankie se posiciona, comandando a jornada com cantos, estudos bíblicos, leituras e pregações em uma cerimônia que se estende das 9h às 12h, aos domingos. A língua mistura francês e crioulo.

A religiosidade é pilar fundamental da cultura dos novos imigrantes do Brasil. Embora uma parcela dos haitianos seja praticante do vodu (religião de origem africana praticada no Haiti), é na matriz evangélica que eles se expressam abertamente. Frankie enumera os motivos que levaram os caribenhos a improvisarem sua própria igreja:

– Muitos não entendiam nada nos cultos daqui por desconhecer o português. Não conseguiam louvar a Deus. Gostamos de fazer a celebração pela manhã, mas aqui a maioria acontece à noite. Não queremos perder nossos costumes.

O jeito haitiano de orar é diferente do brasileiro, mais comedido. Trajando suas melhores roupas, alguns em vestes sociais, sapatos lustrosos, eles são enérgicos nas três horas de culto. Cantam alto, erguem as mãos ao céu, tocam o peito, fecham os olhos, viram-se de um lado ao outro, batem palmas, o pé vai de encontro ao chão ritmadamente, produzindo sons. Alguns se ajoelham em frente às cadeiras plásticas. Outros baixam a cabeça, amparam o rosto com a palma de uma mão e rezam baixinho, inaudível.

Aquele som irreconhecível para quem passava do lado de fora, mas que lembrava percussão, é fruto da batucada feita pelos fiéis na capa dura das bíblias. Os haitianos chegam a ser performáticos. Sentem-se mais confortáveis em um templo, ainda que improvisado, criado para manter os padrões da sua cultura. Aceitam a presença de brasileiros, mas, ali, prevalecem seus costumes.

Há um momento de catarse quando cada um faz sua oração em voz alta. Eram 30 haitianos rezando energicamente ao mesmo tempo, batendo palmas e pés, uma gritaria de fé. E, no final, recolhem contribuições em moedas ou notas de baixo valor em uma cesta verde para ajudar no aluguel do imóvel.

Em um lugar especial, ao lado de compatriotas, desabafam. Na igreja, foram diversas as reclamações sobre racismo, xenofobia e desinformação dos brasileiros. Eles ficam ofendidos quando ouvem comentários sobre a suposta “falta de comida” no Haiti, o que negam veementemente. Explicam que não passavam fome no seu país, mas que precisaram sair para buscar trabalho e uma vida melhor.

– Uma pessoa que nasce em Porto Alegre não pode ir a Santa Catarina? – questionou um haitiano que pediu a palavra em um intervalo do culto, em resposta aos comentários que escuta rotineiramente.

Além das cerimônias religiosas, os imigrantes participam de confraternizações promovidas por associações de haitianos e senegaleses. A organização em entidades é crescente. Por meio das agremiações, reúnem-se para ouvir a música do seu país, saborear um prato típico, reviver hábitos das suas nações. Eventos como esse já ocorreram em praticamente todas as cidades-destino da nova imigração. Em Lajeado, a banda evangélica Harmony Singers se apresentou em uma praça. Formado por caribenhos que, em maioria, trabalham em frigoríficos, o conjunto toca reggae e compas, o ritmo tradicional do Haiti.

Uma pequena fração dos imigrantes ocupa o tempo livre com a organização social e a política. Renel Simon, haitiano que trabalha na prefeitura de Lajeado no acolhimento dos estrangeiros, está colaborando com a criação e a união de uma série de entidades no Vale do Taquari. O movimento inclui municípios como Estrela, Arroio do Meio, Fazenda Vila Nova e Encantado. Em agosto, Renel esteve no Palácio do Planalto, em Brasília, para apresentar uma pauta com cinco reivindicações: trabalho, habitação, documentação, livre organização e educação.

– Nem todos vão chegar perto das autoridades, mas, com organização, podemos fazer isso e representar os imigrantes – disse.

Afora a religião e os esporádicos eventos culturais de associações, haitianos e senegaleses pouco fazem com o tempo livre. Não estão entrosados com a sociedade a ponto de procurar lazer em lugares públicos. Tampouco há dinheiro sobrando para gastar em divertimento. Costumam ficar em casa, em grupos, passando o tempo em conversas ou falando com a família pela internet.

– Percebemos que eles não têm atividades de lazer. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Alguns chegam a pedir serviço extra no final de semana – conta Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro, em Caxias do Sul.

Recentemente, um grupo de senegaleses empregados na empresa pediu a ajuda de Ana Paula para ter uma atividade remunerada nos finais de semana. Encontraram trabalho aos sábados e domingos em uma terceirizada que faz limpeza em indústrias.

A lembrança de que estão em um país diferente, onde nem todos aprovam a sua presença, é mais um inibidor da circulação natural pelas cidades.

– Não tenho muito dinheiro para gastar. Se você vai numa festa, gasta muito. E aqui é perigoso, temos de nos cuidar, tem muito vagabundo na rua. Meu pai e minha mãe sempre pedem cuidado, lembram que aqui não é o meu país – diz o jovem senegalês Mamadou Wakhou, morador de Caxias do Sul e funcionário da Saccaro há quase dois anos.






FÉ TRAZ A TERRA NATAL PARA PERTO

Do lado de fora de um prédio de alvenaria verde, nos arredores da Parada 16 da Lomba do Pinheiro, ouvia-se uma cantoria ritmada por batidas de palmas, pés e alguma outra coisa difícil de identificar, mas que lembrava instrumentos de percussão. Quem passava pela estreita rua na manhã do último domingo, lançava o olhar para o lado de dentro, buscando entender o que acontecia. A curiosidade era ainda mais aguçada porque a altivez da cantoria revelava um idioma estranho, desconhecido dos brasileiros. Cruzando a entrada, com aquelas portas de correr para cima, facilmente se decifrava o mistério. Um grupo de 30 haitianos, todos moradores da Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre, transbordava devoção em um culto evangélico. O recinto estava lotado. O enraizamento dos imigrantes caribenhos no bairro avançou de tal forma que eles improvisaram a criação de uma igreja para atender suas necessidades. Antes, reuniam- se nas manhãs de domingo na casa de Adius Deissier, conhecido como Frankie. Mas o comparecimento de fiéis aumentou, o lugar ficou pequeno e, há dois meses, alugaram um imóvel para as celebrações. Na parede frontal, do lado externo, a única identificação está numa faixa que diz, em letras miúdas: Núcleo de Oração Maison de Priere. Na parte interna, não há cruz, imagem ou qualquer outro adorno que lembre uma igreja. Tudo é muito simples. Há apenas um púlpito, onde Frankie se posiciona, comandando a jornada com cantos, estudos bíblicos, leituras e pregações em uma cerimônia que se estende das 9h às 12h, aos domingos. A língua mistura francês e crioulo. A religiosidade é pilar fundamental da cultura dos novos imigrantes do Brasil. Embora uma parcela dos haitianos seja praticante do vodu (religião de origem africana praticada no Haiti), é na matriz evangélica que eles se expressam abertamente. Frankie enumera os motivos que levaram os caribenhos a improvisarem sua própria igreja: – Muitos não entendiam nada nos cultos daqui por desconhecer o português. Não conseguiam louvar a Deus. Gostamos de fazer a celebração pela manhã, mas aqui a maioria acontece à noite. Não queremos perder nossos costumes. O jeito haitiano de orar é diferente do brasileiro, mais comedido. Trajando suas melhores roupas, alguns em vestes sociais, sapatos lustrosos, eles são enérgicos nas três horas de culto. Cantam alto, erguem as mãos ao céu, tocam o peito, fecham os olhos, viram-se de um lado ao outro, batem palmas, o pé vai de encontro ao chão ritmicamente, produzindo sons. Alguns se ajoelham em frente às cadeiras plásticas. Outros baixam a cabeça, amparam o rosto com a palma de uma mão e rezam baixinho, inaudível. Aquele som irreconhecível para quem passava do lado de fora, mas que lembrava percussão, é fruto da batucada feita pelos fiéis na capa dura das bíblias. Os haitianos chegam a ser performáticos. Sentem-se mais confortáveis em um templo, ainda que improvisado, criado para manter os padrões da sua cultura. Aceitam a presença de brasileiros, mas, ali, prevalecem seus costumes. Há um momento de catarse quando cada um faz sua oração em voz alta. Eram 30 haitianos rezando energicamente ao mesmo tempo, batendo palmas e pés, uma gritaria de fé. E, no final, recolhem contribuições em moedas ou notas de baixo valor em uma cesta verde para ajudar no aluguel do imóvel. Em um lugar especial, ao lado de compatriotas, desabafam. Na igreja, foram diversas as reclamações sobre racismo, xenofobia e desinformação dos brasileiros. Eles ficam ofendidos quando ouvem comentários sobre a suposta “falta de comida” no Haiti, o que negam veementemente. Explicam que nã passavam fome no seu paí, mas que precisaram sair para buscar trabalho e uma vida melhor. –Uma pessoa que nasce em Porto Alegre nã pode ir a Santa Catarina? –questionou um haitiano que pediu a palavra em um intervalo do culto, em resposta aos comentários que escuta rotineiramente. Além das cerimônias religiosas, os imigrantes participam de confraternizações promovidas por associações de haitianos e senegaleses. A organização em entidades crescente. Por meio das agremiações, reúnem-se para ouvir a música do seu país, saborear um prato típico, reviver hábitos das suas naçõs. Eventos como esse já ocorreram em praticamente todas as cidades-destino da nova imigração. Em Lajeado, a banda evangélica Harmony Singers se apresentou em uma praça. Formado por caribenhos que, em maioria, trabalham em frigoríficos, o conjunto toca reggae e compras, o ritmo tradicional do Haiti. Uma pequena fração dos imigrantes ocupa o tempo livre com a organização social e a política. Renel Simon, haitiano que trabalha na prefeitura de Lajeado no acolhimento dos estrangeiros, está colaborando com a criação e a união de uma séie de entidades no Vale do Taquari. O movimento inclui municípios como Estrela, Arroio do Meio, Fazenda Vila Nova e Encantado. Em agosto, Renel esteve no Palácio do Planalto, em Brasília, para apresentar uma pauta com cinco reivindicações: trabalho, habitação, documentação, livre organização e educação. –Nem todos vã chegar perto das autoridades, mas, com organização, podemos fazer isso e representar os imigrantes –disse. Afora a religião e os esporádicos eventos culturais de associações, haitianos e senegaleses pouco fazem com o tempo livre. Não estão entrosados com a sociedade a ponto de procurar lazer em lugares públicos. Tampouco há dinheiro sobrando para gastar em divertimento. Costumam ficar em casa, em grupos, passando o tempo em conversas ou falando com a família pela internet. –Percebemos que eles nã tê atividades de lazer. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Alguns chegam a pedir serviço extra no final de semana –conta Ana Paula de Zorzi Caon, gerente de recursos humanos da Saccaro, em Caxias do Sul. Recentemente, um grupo de senegaleses empregados na empresa pediu a ajuda de Ana Paula para ter uma atividade remunerada nos finais de semana. Encontraram trabalho aos sábados e domingos em uma terceirizada que faz limpeza em indústrias. A lembrança de que estão em um país diferente, onde nem todos aprovam a sua presença, é mais um inibidor da circulação natural pelas cidades. –Não  tenho muito dinheiro para gastar. Se você vai numa festa, gasta muito. E aqui é perigoso, temos de nos cuidar, tem muito vagabundo na rua. Meu pai e minha mã sempre pedem cuidado, lembram que aqui não éo meu país –diz o jovem senegalê Mamadou Wakhou, morador de Caxias do Sul e funcionário da Saccaro há quase dois anos.





SONHOS REAFIRMADOS

BABU GAI Natural da Gâmbia, pequeno país encravado no Senegal, Babu Gai já era famoso em Erechim em 2014, quando foi encontrado pela reportagem de ZH. Em um ano, muita coisa mudou. Para melhor. A clientela cresceu, a alfaiataria de Babu é cada vez mais procurada para a confecção de vestidos de casamento e formatura. Também costura os trajes dos corais de Erechim e região. Em ascensão, o africano ampliou o seu estabelecimento, consolidado como ponto de encontro entre imigrantes e brasileiros.

O dinheiro se multiplicou e, além da reforma, conseguiu comprar um carro. A vida avançou no campo pessoal. Babu casou-se com uma senegalesa, com certo grau de parentesco, o que é comum em sua tradição. O matrimônio foi feito à distância: Babu no Brasil e a mulher, no Senegal. Mas, até o final do ano, ela deverá estar em Erechim.

Vaidoso, carismático e bem vestido, o alfaiate conta que teve alguns relacionamentos com brasileiras, mas não deu certo. As culturas se chocaram e o africano, muçulmano, não encontrou as características que idealiza em uma mulher. Por isso, o seu futuro será com uma pessoa de origem semelhante.

De opiniões fundamentadas, com a capacidade de discorrer longamente sobre os assuntos, Babu fica com o semblante mais sério ao falar sobre a situação dos imigrantes no Brasil. Está preocupado com a escalada de xenofobia.

– Os imigrantes brasileiros estão felizes no Exterior. Por que não podemos nos sentir assim aqui no Brasil? – pergunta.

Em outro nível de adaptação à vida no Brasil, onde está há cinco anos, Babu é dos poucos imigrantes que participam da vida social da cidade em que mora. É procurado por diversos imigrantes que precisam de todo o tipo de ajuda, sobretudo para conseguir emprego. Recentemente, ajudou o senegalês Mustafa Dien a encontrar trabalho na limpeza de uma padaria. Mas Dien, em razão da alta do dólar, ainda não conseguiu cumprir sua meta ao vir para o Brasil: enviar dinheiro para sua família na África.





SONHOS REAFIRMADOS


Depois de terminar o noviciado em Marau, o haitiano Jean Daniel François partiu para Caxias do Sul no final de 2014. Com estudo e moradia garantidos pela congregação dos freis capuchinhos, concentra-se exclusivamente nos planos de se tornar padre. Em outubro do ano passado, iniciou a preparação para o vestibular de Filosofia na Universidade de Caxias do Sul. Foi aprovado, mesmo sem a adaptação perfeita ao português.

– Fiz muita leitura. Isso ajudou a melhorar meu conhecimento da língua. Acompanho as aulas sem problemas – conta ele, já no segundo semestre do curso.

Jean Daniel se empolga ao lembrar que foi bem recebido em sala de aula. Os colegas o chamam para fazer trabalhos em grupo. Não tem reclamações. O haitiano planeja se graduar em dezembro de 2017. Na etapa seguinte, voltará ao Haiti para estudar teologia e, enfim, tornar-se padre. Irá exercer o sacerdócio no local em que a congregação determinar. Talvez fique no seu país, mas não descarta o retorno ao Brasil.

Por enquanto, na condição de frei, faz celebrações religiosas aos finais de semana na Igreja Santa Rita de Cássia, em Caxias do Sul. Aos sábados, participa de atividades recreativas e religiosas com grupos de jovens da comunidade carente. Jean Daniel se considera um sujeito feliz. Plenamente.

Nem todas as peças do tabuleiro foram derrubadas pela crise econômica do Brasil. No interior do Estado, ZH reencontrou, pouco mais de um ano depois, personagens da reportagem Os Novos Imigrantes, publicada em agosto de 2014. Ao menos três deles conquistaram melhoras em suas vidas. São pessoas que venceram, mesmo com todos os prognósticos apontando o contrário, superando dificuldades como a redução do emprego, o dólar alto, a distância da família, o preconceito e a desconfiança.

Em meados de 2014, Jean Edrice Nelzy, também conhecido como Natan, tinha vergonha da casa em que vivia, em Lajeado. Era uma peça nos fundos de um casarão velho, com aspecto abandonado, rodeada por entulhos e em região alagadiça. A umidade era implacável. Agora, continua trabalhando como pedreiro em uma obra do Minha Casa Minha Vida, o salário não mudou, mas, com disciplina, conseguiu uma casa melhor.

Deixou de pagar R$ 250 pela moradia que lhe trazia vergonha e mudou para outra, com aluguel de R$ 450. A nova casa fica na mesma Rua Borges de Medeiros, mas tem dois quartos – a anterior tinha apenas um –, o que permite que receba visitas e até hospede imigrantes por alguns dias.

Quando conversou com a reportagem, Natan andava feliz porque, finalmente, depois de quatro anos, juntou o dinheiro, com a ajuda de um empréstimo, para comprar a passagem aérea ao Haiti. Iria visitar a família pela primeira vez. Às vésperas do embarque, estava ansioso para reencontrar a mãe, a quem diz amar muito por ter sido pai ao mesmo tempo. Também conheceria a segunda filha, de quatro anos, que sequer havia nascido quando deixou o Haiti para trás.

terça-feira, 21 de julho de 2015

PEDRA NA CARA



ZERO HORA 21 de julho de 2015 | N° 18233


ANDRÉ MAGS*




Em uma guitarra do Kurt Cobain, tinha um adesivo colado em que se lia “Vandalism: beautiful as a rock in a cop’s face” – traduza, se quiser. Sempre fui fã do líder do Nirvana, porém aquela frase era o extremo absurdo. Não condizia com o cara pacífico e genial que criou o aforismo “o óbvio não é essencial”.

Voltei a lembrar da frase vândala quando a primeira pedra estourou a vidraça de um banco nos protestos de junho de 2013 em Porto Alegre. Cobrir aquelas manifestações mudou a minha trajetória de jornalista. Os atos transformaram também a Zero Hora. Até aquele momento histórico, por anos havia sido mais importante para o jornal falar dos incômodos no trânsito causados por manifestações do que das próprias.

Aquele vandalismo não era bonito, ainda que sua mensagem fizesse sentido: “O que é um vidro quebrado para os bancos cheios de dinheiro?”, questionavam os manifestantes mascarados.

Então, os protestos se encerraram com a Copa do Mundo e cá estamos nós, sendo esmagados pelo rolo compressor da corrupção que há séculos roda por cima do país.

Um dia, um morador de rua veio me pedir dinheiro na Praça da Matriz, onde ficam a Assembleia Legislativa e os palácios Piratini e da Justiça. Naquele centro do poder, questionei-o se, em vez de pedir a mim, não poderia abordar alguns comandantes do Estado que têm salários de sobra, se porventura cruzassem seu caminho. Seria tipo um imposto contra a pobreza cobrado de maneira, digamos, informal. Acho que ele não entendeu a proposta e pulou fora.

De volta ao Kurt, tenho a sensação de que aquela inscrição no instrumento era uma metáfora. Tratava-se de um libelo contra a autoridade, não uma selvagem pedra na cara. Meu desdobre ao morador de rua era mais real e tosco, para que ele lançasse uma pedra moral contra os poderosos:

– Me dá o troco que você me deve por eu ser tão pobre assim?

Mas a autoridade intimida. Temos à mão pedras morais bem mais úteis do que aquelas que quebram vidraças. As urnas poderiam ser verdadeiros pedregulhos, e as ruas, também. Só que me parece que as pessoas não estão entendendo e estão pulando fora. Na crise, apegam-se ao impeachment, medida que, depois do Collor, tornou-se a reivindicação mais óbvia.

Jornalista, repórter de Zero Hora*

segunda-feira, 13 de julho de 2015

DEFORMAÇÃO DA DEMOCRACIA




ZERO HORA 13 de julho de 2015 | N° 18225



EDITORIAIS




O trânsito de Porto Alegre e da Região Metropolitana tem sido sistematicamente obstruído por manifestações e protestos de diversas origens, muitos deles de representatividade insignificante, mas suficiente para provocar transtornos de toda ordem à parcela da população que depende de deslocamentos para cumprir compromissos. A ocupação do espaço público e o direito de manifestação se constituem em prerrogativas democráticas, isso é inquestionável. Mas o direito de ir e vir, também garantido pela Constituição, tem sido constantemente desrespeitado por manifestantes que recorrem invariavelmente a um único ato: trancar o trânsito.

Nos engarrafamentos, ficam retidos outros trabalhadores, pessoas que precisam de atendimento médico, estudantes que têm horário para chegar à escola, viajantes que dependem de conexão aérea, às vezes até ambulâncias e veículos utilizados em serviços essenciais. Raramente bloqueios de estradas atingem os verdadeiros alvos dos protestos, que são as autoridades habilitadas a atender as reivindicações.

É evidente que esse conflito de interesses não se resolve com repressão. Mas sempre podem existir alternativas civilizadas, como, por exemplo, a destinação de áreas específicas da cidade para as manifestações, como fazem governantes em outros países. O argumento de que o protesto tem que causar incômodo à população para atingir seu objetivo é uma deformação da democracia que precisa ser revisada.

domingo, 12 de julho de 2015

À SOMBRA DO ANONIMATO




ZERO HORA 12 de julho de 2015 | N° 18224


LETÍCIA DUARTE



Aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil e legislação já existente contra crimes digitais ainda estão longe de encerrar o embate entre liberdade e regulação no ambiente virtual

Wendel Calixto comentou: “Escrava filha da puta desgraçada, volta pra senzala fugitiva, dois anos no xicote qnd teu dono te capturar de volta... preta imunda”. Teve sete curtidas.

Karl Jagger sugeriu: “Joga pra cima, se voar é urubu e se cair é bosta”. Quarenta e oito usuários deram like.

Luanna Santos reclamou: “Não tenho tv colorida pra ficar olhando essa preta não.” Atraiu 65 curtidores.

Ao mesmo tempo em que mostrou o quanto o racismo ainda está impregnado na sociedade brasileira, a série de ataques à apresentadora do tempo do Jornal Nacional, Maju Coutinho, em comentários a uma publicação no perfil oficial do telejornal no Facebook, na noite de 2 de julho, também suscitou discussões sobre os limites do anonimato na internet. Como conciliar o direito à privacidade com a escalada ofensiva e criminosa que cresce sob pseudônimos e perfis fakes, como boa parte desses que atacaram a jornalista?

Um dos primeiros a denunciar as mensagens criminosas foi o antropólogo Bruno Puccinelli, 32 anos, de São Paulo, que fez uma cópia da tela e a enviou a três órgãos federais. Antes, deixou um recado na mesma página:

“Acabo de fazer um print de todos os comentários dessa postagem e irei levá-lo às autoridades cabíveis. Racismo é crime”.

A publicação, que recebeu mais de 23 mil curtidas, foi uma das responsáveis por deflagrar reações em todo o país. Bruno calcula que, dos cerca de mil comentários copiados, pelo menos um terço tinha traços racistas. Até a última sexta-feira, a polícia só havia identificado um suspeito – um adolescente de 15 anos.

O episódio revela as fragilidades na punição de crimes cometidos pelas redes, que frequentemente acabam impunes. Na teoria, a identificação dos IPs das máquinas onde são criados os perfis falsos seria o caminho para identificar os responsáveis. Na prática, uma série de artimanhas técnicas, como usar máquinas alugadas ou serviços pagos como o VPN, que dificulta a determinação do IP da conexão da rede, associada à falta de estrutura para investigar crimes digitais, torna o problema bem mais complexo.

Para o advogado especializado na área de mídia e entretenimento Marcos Bitelli, professor da PUC-SP e do Instituto Internacional de Ciências Sociais, a questão é grave e não há solução no horizonte. Ainda que a lei seja uma só para crimes cometidos no mundo real ou virtual, a dificuldade é fazer com que suas consequências tenham efeito no ambiente digital. A proliferação de páginas hospedadas no Exterior é mais uma carta a embaralhar o jogo.

– Existe uma total lacuna. As normas precisam ter efetividade, e muitas vezes, para isso, se precisa de suporte técnico. A lei não alcança quem está fazendo. Teve aquele caso do juiz que mandou travar o Whatsapp, por exemplo, e todo mundo ficou contra. Mas como se poderia bloquear a troca de mensagens indevidas se não se tem acesso ao verdadeiro autor? Isso tudo é uma grande incógnita no mundo do direito – questiona.

Bitelli lembra que, durante o julgamento das biografias, o próprio presidente do STF, Ricardo Lewandowski, comentou que existem pelo menos quatro falsos no Facebook com fotos dele e da sua família – e que não consegue removê-los.

– Aí nem se trata de anonimato, são pessoas se apropriando ou assumindo a identidade dele. E ele disse abertamente na sessão: “Chegou uma hora em que eu cansei, não sei mais o que fazer para dizer que eu sou eu”. Se isso acontece até com o presidente do Supremo, imagine – alerta Bitelli.

Na avaliação do advogado, uma oportunidade de ampliar as possibilidades de regulamentação foi perdida durante a aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil, onde prevaleceu a defesa da total liberdade na rede. Mas a visão é contestada por estudiosos digitais como Fabro Steibel, coordenador-geral do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Para Fabro, o marco foi uma conquista importante ao estabelecer quais são os direitos dos usuários a serem protegidos, antes de tipificar crimes.

– No Marco Civil, fica respeitado o direito à privacidade. Quando há crime, aí sim tem que se investigar, o que é diferente de vigilância em massa – argumenta.

Como ilustração, Fabro cita o caso da espionagem praticada pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA: sob pretexto de investigar possíveis casos terroristas, passou a vigiar todo mundo – inclusive o governo brasileiro e a Petrobras, em nome de interesses econômicos:

– A vigilância em massa parece ser interessante para prevenir crimes, mas o que resulta é invasão de privacidade, extrapola os limites da Justiça. Seria como, em vez de procurar agulha no palheiro, investigar todo o palheiro para ver se tem agulha. Não precisa vigiar todos, só quando há suspeitas _ diz.

Para isso, um caminho seria a capacitação do Estado para investigar esses crimes, como a ampliação das delegacias de crimes digitais.

– Um usuário falso não é irrastreável. Não existe comportamento anônimo, somos uma máquina que está ligada a um corpo – observa.

A defesa da privacidade e do direito ao anonimato é também uma bandeira do americano Cole Stryker, autor do livro Hacking the Future: Privacy, Identity and Anonymity on the Web (“Hackeando o Futuro: Privacidade, Identidade e Anonimato na Rede”, ainda não traduzido no Brasil). Em entrevista por email, de Nova York, ele diz que empresas podem tomar iniciativas para conscientizar seus usuários, mas não vê como positiva qualquer tentativa de proibir o anonimato. O argumento também passa pelo viés prático: mesmo que se criasse uma legislação, seria ineficaz porque usuários mais avançados certamente encontrariam maneiras para burlar a lei, permanecendo ocultos.

– Obviamente o anonimato permite que as pessoas façam coisas ruins, mas também é assim com muitas outras liberdades. As pessoas abusam, e vão continuar abusando, do anonimato, mas é o preço da liberdade – defende.

Na história da internet, os riscos associados ao anonimato são relativamente recentes. Doutor em comunicação social e professor de jornalismo digital da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS, Marcelo Träsel observa que, até meados dos anos 2000, o anonimato era visto como uma forma de dizer a verdade sem se colocar em risco. Assim, um trabalhador poderia vazar informações de atos ilícitos sobre a empresa em que trabalhava sem perder o emprego, por exemplo. Embora os “trolls” sempre tenham existido, originalmente estavam associados a tentativas de fazer provocações engraçadas. Atualmente, porém, o fenômeno desandou em manifestações de ódio, com pessoas querendo destruir ideias ou perspectivas diferentes das suas. Diante da crescente agressividade, alguns portais de comunicação têm desligado sua caixa de comentários. Mas, em redes sociais, que lidam com fluxos de interação, o dilema é maior.

– É preciso lembrar que Facebook e Twitter ganham com essas manifestações. Cada comentário gera mais visualizações – analisa.

Diante do imbróglio, Träsel acredita que seria mais eficiente investir em educação dos usuários, para criar uma cultura de intolerância à agressividade na rede, em vez de tentar rastrear todo mundo.

– Proibir anonimato é enxugar gelo. Talvez a NSA consiga identificar qualquer pessoa, mas os recursos que a gente tem são limitados – constata.

A crescente disseminação de robôs, especialmente com fins político-eleitorais, é outra face da discussão. Mas mesmo aí analistas da rede veem pouca novidade: se hoje correntes políticas tentam influenciar usuários no Facebook ou no Twitter, antigamente grupos políticos mandavam cartas com reivindicações para o Congresso fazendo-se passar por eleitores, numa prática que Träsel identifica como “astroturfing” – conceito que designa ações políticas ou publicitárias que tentam criar a impressão de que são movimentos espontâneos e populares.

– Achar que tem de proibir comentários para não haver crimes é a mesma coisa que achar que não se deve ter telefone para não haver trotes. Ou que, para não ter acidentes, é melhor não ter carro. O que precisamos discutir é o uso que se faz dessa tecnologia – sugere Fabro Steibel, coordenador-geral do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.


ENTREVISTA - MATTHEW GARRETT
“As pessoas são más”


Membro do conselho da Free Software Foundation, a maior importante instituição dedicada ao tema no mundo, o desenvolvedor de software norte-americano Matthew James Garrett, 35 anos, veio a Porto Alegre nesta semana para participar como palestrante da 16ª edição do Fórum Internacional Software Livre.

Em entrevista ao PrOA, ele questiona a ideia de que a proibição do anonimato seria uma solução para impedir a disseminação de comentários ofensivos ou criminosos:

Como conciliar o direito à privacidade com os riscos do anonimato?

O que costumamos ver é que o fato de a pessoa estar publicamente identificada não necessariamente a faz parar de ter um comportamento abusivo, porque há pouquíssimas consequências. Não queremos uma internet em que seja fácil dizer que determinada pessoa disse uma coisa maldosa, e portanto essa pessoa deve ir para a prisão ou não deve poder usar a internet. Realisticamente, acho que temos que pressupor que as pessoas vão ser desagradáveis umas com as outras. Temos milhares de anos de civilização, e as pessoas ainda são más umas com as outras. Não vamos terminar com isso mudando as leis ou forçando-as a mostrar seus nomes.

Como minimizar riscos?

O que podemos fazer é tornar mais fácil para as pessoas se protegerem contra isso, tornar mais fácil para as pessoas dizerem “eu não quero ver esse tipo de comentário”. Uma coisa que vemos frequentemente é que até no Facebook, onde teoricamente não é permitido que você tenha identidade anônima, ainda vemos abusos horríveis, mesmo que se possa clicar no nome do usuário, ver sua foto, onde ele mora.

Tem crescido também o uso de robôs na web para influenciar posições políticas. Qual a sua opinião?

Esse é um problema muito antigo, apenas mudou de escala. No passado, talvez você poderia escrever panfletos com citações de pessoas que não existem, inventar pesquisas, mudar os números. Agora estão apenas fazendo praticamente a mesma coisa em outros meios, como o Twitter, tentando influenciar pessoas. Mas é um velho problema.

POR LETÍCIA DUARTE * * COLABOROU JULIANA FORNER

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O LEQUE DA INTOLERÂNCIA



ZERO HORA 28 de junho de 2015 | N° 18208


EDITORIAL



O Brasil terá de reaprender a conviver com as diferenças e as discordâncias, para que a liberdade de expressão seja exercida no limite da civilidade.O Brasil promoveu, por deliberações institucionais pautadas pela sociedade, avanços importantes no sentido de ampliar direitos e respeito à diversidade, sob todos os pontos de vista. São ações afirmativas das liberdades, muitas das quais asseguradas por atos do Judiciário, dos governos e dos parlamentos. Tudo o que o país não pode, depois de vencer a resistência de costumes arraigados e aperfeiçoar leis e normas de convivência, é retroceder a conceitos há muito superados. Movimentos de resistência a mudanças vêm ganhando espaço, não só nas redes sociais, mas também no Congresso, e se caracterizam, em muitos casos, como fenômeno exacerbado de radicalismos.

A intolerância é, em circunstâncias variadas, a marca de muitas dessas manifestações. Tem sido assim na discriminação de pessoas por seus credos religiosos, na agressão a gays em lugares públicos, na negação do direito à homoafetividade e até na depreciação de imigrantes. Em todos os casos, o que se condena não é a crítica ou a livre manifestação de contrariedade com o comportamento alheio. Ninguém é obrigado a exaltar o que considera inaceitável, por convicções pessoais, e tampouco deve ser punido, por antecipação, por ideias e opiniões. Isso não significa a aceitação de ataques agressivos a direitos individuais.

É exemplar, como paradoxo, nesse ambiente de relações tensionadas, o caso de pessoas que investem contra credos alheios e, ao mesmo tempo, exigem respeito às próprias convicções. O país deve se submeter ao direito de ter e ao direito de não ter fé. Também é incoerente a ação de grupos que, em nome de certezas políticas, ignoram prerrogativas de adversários transformados em inimigos, num progressivo exercício de absolutismo. A maioria dos brasileiros não aceita tal comportamento, assim como rejeita manobras coordenadas pelos que pretendem, com um alegado Estatuto da Família, subtrair direitos conquistados a muito custo por minorias.

Pretextos ditos moralizantes não podem sustentar atitudes demagógicas, retrógradas e discriminatórias. Nada sustenta a intolerância com religiões, opções políticas, orientação sexual, condição social e outros direitos fundamentais. O Brasil precisa reafirmar que o Estado é laico, para que as crenças religiosas sejam livremente exercidas, desde que não interfiram nas grandes questões institucionais. Liberdades pessoais e de grupos somente serão asseguradas se submetidas à contrapartida das liberdades e das discordâncias alheias.

O LEITOR CONCORDA

Muito bom o editorial e ele está certo em todas as colocações. Em primeiro lugar, qualquer um pode ter a opinião que quiser, mas, quando essa opinião tenta dizer quais direitos devem ou não ser alcançados às demais pessoas de nossa sociedade, isso deve ser enfrentado conforme o Estado Democrático de Direito. Quando alguém se coloca contra o casamento homoafetivo, o faz sem qualquer argumento válido do ponto de vista do Direito, que é o que interessa para o Estado Brasileiro, e isso é homofobia. O STF já se manifestou sobre isso, dizendo que o conceito de família é um conceito aberto e que não cabe a mim ou a qualquer outra pessoa decidir como deve ser a família de alguém, e sim as próprias. Aliás, o STF também já confirmou que a Constituição é laica, o que quer dizer que nenhum argumento religioso tem validade, dizendo inclusive que no único lugar que aparece a palavra Deus, que é no seu prefácio, ele não tem validade alguma porque não tem nenhuma força normativa.

MÁRCIO DA SILVA KUBIACH – TAPES (RS)

O LEITOR DISCORDA


Não concordo! Considero que temas como religião, opções políticas e o que está inserido nessa orientação sexual dos debates não podem ser analisados em um mesmo laboratório! São temas distintos, complexos e merecem profunda reflexão! O núcleo do que realmente está em pauta é a livre manifestação das minorias alternativas, como ocorre nos planos social, econômico, político e cultural; não deve um economista pautar limites para políticas sociais do país, como o inverso é verdadeiro! Considero, portanto, que as crescentes manifestações LGBTs ocorridas e incentivadas pelas “criações artísticas” de seus praticantes (novelas em geral da “grande rede”) buscam inserir nos planejamentos escolares discussões na tenra infância, despertando aos infantes experiências distintas precocemente, absurdamente assemelhada à combatida “ideologia sexual” em flagrante orientação, ou mesmo inoportuna, precipitada orientação de nossos aprendizes, naturalmente, distinta de suas precoces realidades!!!

JOSÉ ÉDLER BISCAÍNO PAHIM MANOEL VIANA (RS)