Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

GATOS ACUADOS SE TRANSFORMAM EM TIGRES



ZERO HORA 07 de dezembro de 2014 | N° 18006


ENTREVISTA



Ex-combatente do Estado Islâmico recebe ZH em sua casa na fronteira da Turquia com a SíriaEle se chama Abu Hamza. Não é nome civil, mas apelido socialmente aceito e comum – literalmente, Pai de Hamza, genitor de alguém chamado Hamza, mesmo nome de um tio do Profeta. Sorridente, abre a porta do apartamento num subúrbio pobre de Sanliurfa, sudeste da Anatólia, na Turquia, e estende a mão.

Com estatura mediana, pele clara, barba e cabelos castanhos bem aparados com entradas pronunciadas, Abu Hamza se veste como milhões de pais de família num sábado: abrigo esportivo cinza com dizeres de grife em inglês e camiseta. A diferença é que não está voltando de um shopping. Ex-capitão do exército sírio que desertou para se juntar às forças da oposição em 2011, ele combateu durante oito meses, de fevereiro a outubro, nas fileiras de uma das organizações armadas mais temidas da atualidade: o Estado Islâmico (EI).

Abu Hamza aceitou falar a ZH em sua casa, com a condição de não ter seu rosto fotografado, nem ser filmado ou gravado. Logo na chegada, fica claro que o encontro terá testemunhas: na soleira da porta, pares de sapatos masculinos empoeirados indicam que o anfitrião tem visitas. Ele conduz o repórter, a fotógrafa e o tradutor a uma sala de estar mobiliada com tapetes, almofadas e um móvel de canto sobre o qual repousa uma TV. À entrada dos recém-chegados, três homens adultos levantam-se para os cumprimentos amigáveis de praxe. Têm mais ou menos a mesma idade de Abu Hamza, e dois distinguem-se do dono da casa pelas barbas bem mais longas. Depois de alguns minutos, o anfitrião traz taças de café preparado à moda árabe, com borra em abundância no fundo, e tigelas com biscoitos confeitados.

– O café brasileiro é bom – comenta um dos presentes, sorrindo.

A menção do Brasil suscita comentários bem-humorados entre os falantes de árabe, nos quais desponta a palavra “Carnaval”, seguida de risos. Deitado em frente à TV, um menino de cerca de três anos assiste a Happy Feet – O Pinguim, vencedor do Oscar de desenho animado em 2007, com legendas em árabe. É a história de um jovem pinguim imperador que tenta fazer os irmãos de espécie, cantores exímios por natureza, aceitarem sua única habilidade, a de dançarino. Às vezes, os olhos do menino descolam-se da tela em direção aos visitantes, mas logo fazem o movimento de volta.

– Ele não ouve, é surdo – diz um dos presentes, tocando no próprio ouvido com o dedo.

Abu Hamza teve uma filha há algumas semanas. Pelas portas entreabertas, percebem-se vultos e vozes de mulheres. A entrevista começa, com as perguntas formuladas em inglês e vertidas para o árabe pelo tradutor.



ENTREVISTA

“Se os ataques ao EI continuarem, aumentará o risco de ataque aos EUA e à Europa”


Abu Hamza, Ex-capitão do exército sírio e ex-combatente do Estado Islâmico



Quando e onde o senhor nasceu? Como era sua família?

Nasci em Hasaka (no oeste da Síria e hoje sob domínio do EI), em 1988. Minha família era de classe média, nem pobre, nem rica. Em matéria de religião, eram conservadores.

Havia autoridades religiosas entre seus familiares?

Não, nenhuma. Era apenas uma família conservadora, onde se rezava, se jejuava, se pagava o zakkat (ajuda financeira aos necessitados). Alguns eram fortemente religiosos, outros não, mas eram, de maneira geral, conservadores.

Politicamente, como seu pai se definia?

Meu pai nunca teve boas relações com o regime de Hafez al-Assad. Manteve uma atitude política de oposição durante 30 anos. Durante o período da República Árabe Unida (união política entre Egito e Síria entre 1958 e 1961, concebida como primeiro passo para uma federação pan-árabe inspirada pelo presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser), ele pertencia ao Partido da União Socialista, que tinha uma postura anticapitalista e anti-imperialista. Quando Hafez al-Assad tomou o poder (em 1970, Al-Assad, então ministro da Defesa, comandou um golpe de Estado e assumiu pessoalmente o poder, purgando as forças armadas e o partido Baath), todos os partidos, com exceção do seu próprio Baath, foram destruídos. Os grupos mais à esquerda foram dizimados. Meu pai fazia parte do setor que não aceitava o domínio de Al-Assad.

Por que se tornou militar? Sua família apoiou a escolha?

Quando terminei o ensino médio, fui para a Academia Militar em Damasco, onde fiquei por três anos, e depois segui carreira. A decisão foi minha. Obviamente, houve algum apoio da família. Não havia alternativas, não havia trabalho para se sustentar.

Como foi sua carreira no exército? O que fazia?

Cheguei a capitão. Trabalhava com guerra eletrônica.

Como vê o exército sírio?

Antes, a Síria costumava ter um bom nível de liberdade, e o exército era parte desse ambiente. Contudo, depois da década de 1980, os alauítas passaram a dominar tudo. Eles permitem que cristãos, xiitas e até mesmo sunitas progridam e até eventualmente sejam designados para comandos, mas, de fato, é algo superficial, aparente. O controle está nas mãos dos alauítas.

Como era ser sunita num exército que funcionava a partir de uma lógica sectária?

No começo, fiquei chocado. Acreditava que estava ingressando num exército nacional, que deveria servir à defesa da Síria. Percebi aos poucos que eles não estavam interessados nisso. Só usavam força contra os humildes, os que não tinham poder.

Chegou a ser punido? Foi preso?

Você não pode fazer um desafio desse tipo, não pode sequer pensar nisso. Até mesmo se descobrirem que você reza isso significará prisão. Se um oficial cristão vai à igreja, está tudo certo, não acontece nada. Se um sunita reza, seja onde for, mesmo em casa, a punição será severa. Isso é um grande problema. Os sunitas são mais de 80% da população da Síria (segundo o demógrafo Youssef Courbage, são mais de 70%).

O homem que havia feito a observação sobre a surdez do menino interrompe a entrevista: “Beber álcool também é proibido no interior das unidades do exército sírio, mas, se um cristão é flagrado bebendo, acaba se safando e tudo fica bem. Rezar também é proibido, mas se um muçulmano é apanhado rezando, vai para a prisão”.

Havia algo positivo no exército, Abu Hamza?

(Pensa por alguns segundos.) Tudo era ruim. (Pausa. O tom agora é mais amargo.) Eles destroem o seu futuro, o seu caráter. (Sorri.) Uma das tradições familiares mais disseminadas na região em que eu vivia era fazer uma grande e animada festa quando um filho terminava o serviço militar. Era como se o sujeito estivesse se casando. Saber que um filho ou neto não precisava mais fazer parte daquilo era motivo de grande alegria.

Como define o regime de Bashar Al-Assad?

Você deve imaginar. O que pensar de um regime em que três ou quatro famílias controlam tudo?

Os dois visitantes de barbas mais longas levantam-se e se despedem. Abu Hamza acompanha-os até a porta. Na TV, o pinguim dançarino está prestes a ser devorado por uma baleia orca. Deitado no tapete, o menino adormeceu. Na volta, o anfitrião passa a demonstrar impaciência crescente.

Como vê a influência de outros países, como Rússia e Irã?

Há muitos conselheiros, e obviamente a Rússia e o Irã são os patrocinadores do regime sírio. Al-Assad não pode dizer não aos russos ou aos iranianos. Mas faz isso por razões sectárias e ideológicas, e não de segurança ou de defesa. Durante a guerra entre Irã e Iraque (1980 a 1988), por exemplo, todos os países árabes apoiaram o Iraque porque viam no conflito a possibilidade de uma futura agressão iraniana contra outras nações. Houve uma única exceção: Hafez al-Assad (presidente sírio de 1971 até sua morte, em 2000, e pai do atual mandatário, Bashar). A Síria foi o único país árabe que apoiou o Irã.

Por que desertou?

Por uma única razão: independentemente de alguém ser sunita ou não, não se pode permanecer do mesmo lado do regime.

Por que, depois de fazer parte do Exército Livre da Síria, decidiu se juntar justamente ao EI?

As pessoas normalmente preferem ficar do lado dos grupos mais fortes. Foi o que ocorreu com o EI na minha região. Ao mesmo tempo, veem-se as forças de Al-Assad bombardearem bairros, escolas, áreas repletas de pessoas que estão simplesmente vivendo suas vidas. Isso vai levar muitos a se juntar ao EI. Depois de quatro anos de guerra na Síria, o regime cometeu tantos crimes que isso torna todo o resto secundário. A oposição, incluindo a Frente al-Nusra e o EI, também fez coisas ruins. Mas, ainda assim, muito menos do que o regime. E, agora, os sírios veem a coalizão liderada pelos Estados Unidos e seus aliados bombardearem apenas as posições do EI.

As Nações Unidas divulgaram um relatório no qual acusam o EI de cometer crimes de guerra. O que pensa disso?
Também vimos muitos relatórios sobre o regime. O EI fez muito menos (do que Al-Assad). Cometeu, de fato, muitos crimes. Mas nada comparável a Ghouta (ataque químico em Ghouta, subúrbio de Damasco, atribuído ao regime e com estimativas de algumas dezenas até 1,7 mil mortos). Há também outros crimes cometidos pelo PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, facção curda) e pelas milícias xiitas. Tudo isso levará mais e mais sunitas a apoiar o EI. Veja o PUD (Partido Democrático Unitário, outra facção curda): eles expulsaram milhares de árabes, e ninguém sequer os condena. Por que o mundo presta atenção apenas no EI?

Por que deixou o EI?

(Breve pausa.) Não aceito o ponto de vista religioso deles. Creio que estão errados. Não acredito no EI. Mas, se tivesse de escolher entre o Estado Islâmico e o regime, escolheria o EI. Quero perguntar a seus leitores: (eleva o tom de voz) por que o Ocidente está atacando apenas um dos lados, e não o mais forte, uma vez que todos cometeram crimes? (Nova pausa.) E então?

O tradutor diz: “Ele está perguntando a você”. O repórter diz que está ali para fazer perguntas, não respondê-las, e que o Brasil não está bombardeando a Síria.

Abu Hamza prossegue:

É como acontece com um gato. Quando ele é apanhado num canto, pode se tornar um tigre. Em Burma, sob pressão, alguns burmaneses estão se juntando à Al-Qaeda. Se você fosse à Síria logo depois do início da revolução, não encontraria extremistas. As políticas erradas estão levando até onde estamos agora. Se o regime não cair, não haverá paz. E, se os ataques ao EI continuarem, isso aumentará o risco de ataques também na Europa, nos Estados Unidos, em toda parte.

Nenhum comentário: