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domingo, 1 de junho de 2014

MARCO CIVIL É DEFESA CONTRA LEI EM EXCESSO


ZERO HORA 01 de junho de 2014 | N° 17815


DEMÉTRIO ROCHA PEREIRA


COM A PALAVRA

DEMI GETSCHKO

“Marco Civil é defesa contra lei em excesso”




Demi Getschko ajudou a pôr o .br na internet. Nascido na cidade italiana de Trieste, chegou cedo ao Brasil, onde se formou engenheiro eletricista em 1975. Em janeiro de 1991, Getschko esteve no time que estabeleceu a primeira conexão TCP/IP no país, permitindo à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) trocar figurinhas com um laboratório nos Estados Unidos. Hoje, preside o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), que implementa as decisões e projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Se a internet fosse uma rede viária, Getschko seria um dos zeladores das estradas, garantindo bom asfalto, viagem sem engarrafamento e rotas até cada endereço procurado. Em abril, foi incluído no Internet Hall of Fame, panteão de homenageados que ganhou o seu primeiro do Brasil. No dia 27 de maio, Getschko veio a Porto Alegre participar de evento na Federasul, onde concedeu entrevista a Zero Hora.

Junto do teu nome vai sempre o epíteto “um dos pais da internet brasileira”. O que isso significa para ti, e o que tu significas para a internet?

É injusto, no sentido de que a internet é uma criação coletiva. Fiz parte da equipe, estava no lugar certo quando fizemos a primeira conexão TCP/IP, quando os primeiros pacotes passaram na linha entre Fapesp e Fermilab (acelerador de partículas nos Estados Unidos), mas a internet dependeu das redes acadêmicas, dos provedores, de tudo isso. Evidente que, nessas horas, usa-se algum tipo de analogia. Como o “.br” foi registrado na Fapesp e até hoje sou administrador do .br, que tem uma analogia com o Brasil, existem aí alguns paralelos, mas ninguém fez nada por conta. O .br já estava registrado em 1989, fez 25 anos no mês passado. Já a conexão entrou no ar em 1991, quando o nosso parceiro do lado americano, o laboratório Fermi, também ingressou na rede.

Naquele momento, as empresas de telecomunicações não prestavam atenção à rede, e tampouco o governo. Alguém poderia imaginar, lá atrás, que a internet cresceria tanto?

Sinceramente, não. Nos anos 1980, estávamos maravilhados com o correio eletrônico. Já era uma grande coisa poder trocar e-mails com todo o mundo. Eliminava os dias de espera do correio tradicional e eventuais erros na compreensão por telefone. Mas tudo isso na época era voltado para a academia. A segunda leva de usuários importantes, que começou pelo início dos anos 1990, eram as ONGs. No Brasil, posso lembrar do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, ligado ao Betinho. A terceira onda foi dos provedores, que no Brasil tiveram uma grande vantagem.

Por quê?

Quando foi feita a separação entre telecomunicações e internet, a Embratel foi instada a não dar acesso ao usuário final, e surgiu uma cadeia: a Embratel daria acesso às teles, que dariam acesso aos provedores, que dariam acesso ao usuário final. Os provedores no Brasil nasceram dentro de empresas de mídia. O BOL (Brasil Online), na Abril, o UOL (Universo Online), na Folha de S. Paulo. A Globo também entrou na área. Quer dizer, o conteúdo em português apareceu rapidamente, passando da academia para todo mundo. E às vezes se confunde a internet com a web. A web, no Brasil, começou a aparecer em 1993. Quando fiz as primeiras conexões, não imaginava que teríamos imagens e sons naquilo porque estava ocupado com caracteres. A web permitiu que todo mundo colocasse conteúdo próprio, mudou a cara da internet no sentido de espalhá-la pela sociedade.

Nessa narrativa que passa da área acadêmica para ONGs e depois para os provedores, o Marco Civil pode ser entendido como uma afirmação da horizontalidade original da rede?

Falamos da academia, do terceiro setor e dos provedores. Então vieram as teles e o governo. Essa é a ficha caindo sucessivamente em diversos níveis. O Legislativo talvez tenha sido um dos últimos a entrar no processo, e o nosso grande medo era de que entrasse de uma forma pesada demais. O Marco Civil é uma defesa contra a legislação em excesso. Ele não veio para amarrar a rede, mas para impedir que ela fosse amarrada por uma legislação excessiva.

Tu enxergas na internet uma vocação para a democracia? Como disseram da Primavera Árabe: “A revolução será tuitada”?

A internet deu voz a ansiedades reprimidas, trouxe a possibilidade de aglutinação, o direito à reunião. Essas coisas, talvez numa visão conservadora, são para o bem e para o mal. Porque às vezes você se reúne para ir bater em alguém, como naquele linchamento no Guarujá. Desgraçadamente, a consciência se perde no clima geral de comunidade, que às vezes é um pouco descontrolado. Acho extremamente positivo que todo mundo tenha voz na internet, acho positivas as ações organizadas pela internet. O meu único alerta é que isso também pode ressaltar maus instintos que estão presentes em todos, um instinto de turbamulta: quando todo mundo chuta algo, você vai lá e chuta também.

A formação de impérios como o Facebook é também sintoma dessa vontade de aglutinação?

Não falo com propriedade, mas acho que isso representa um desencanto geral pelos processos de representação política. Sem entrar no mérito de estar certo ou errado, isso gera uma necessidade de expressão. A internet permitiu que esse pessoal pudesse se expressar, se unir, e criou uma massa crítica que não havia antes. Dizia-se também que a internet iria acabar com as culturas locais, e todos acabariam falando inglês. Aconteceu exatamente o contrário.

Como assim?

Nos anos 1990, eu ouvia na rádio uma estação grega, e apareceu um grego com sotaque italiano. Era de uma comunidade no sul da Itália que falava o grecânico, dialeto que sobrou da Magna Grécia e é transmitido de pai para filho, como um fóssil vivo, um dinossauro no sul da Itália. Aí tinha um CD com músicas em grecânico à venda, eu enviei um e-mail e comprei o disco. A internet preserva coisas, às vezes exatamente o que a gente imaginaria que sumiria.

No Fórum Internacional Software Livre (FISL), em Porto Alegre, o Marco Civil foi apontado como um exemplo do Brasil para o mundo. Esse papel de vanguarda chega em meio às revelações do Snowden sobre espionagem. Parece uma resposta ágil.

O que o Snowden fez foi dar urgência ao processo, que vem antes dele. E acho que o Snowden tem alguma coisa a ver com internet, mas tem muito mais a ver com telecomunicações e espionagem em geral. A internet é só parte do problema. Naquele sincronismo de eventos, a gente teve a vantagem de poder jogar prioridade em cima do assunto. Tivemos uma reunião em Brasília com a presidente, depois ela falou na ONU, onde citou vários dos princípios do Comitê Gestor, aí surgiu a história de fazer em abril um ArenaNET Mundial (evento aberto com debates sobre o futuro da internet), então veio a Declaração de Montevidéu, falando contra eventuais predomínios norte-americanos… Em suma, uma conjunção de fatores que levaram a essa conclusão que me parece muito favorável.

Na audiência pública na Câmara, tu disseste que o Marco Civil é uma “vacina para o futuro”. Nos Estados Unidos, a questão da neutralidade vem sendo discutida há mais tempo e como vacina para o presente...

A história da neutralidade é delicada. Você vê a discussão americana sobre dar acesso de graça a um serviço ou não. Se você trata todos os pacotes igualmente, mas resolve que não vai cobrar determinados pacotes porque tem um acordo que privilegia o seu usuário, não sei se isso fere a neutralidade. Outro exemplo: você é o Netflix e descobre que seus usuários estão em um provedor “X”. Você então cria uma conexão entre o Netflix e essa rede para que o seu conteúdo esteja mais facilmente disponível aos usuários dessa rede, que vão passar a ter uma experiência melhor desse serviço. Isso é absolutamente normal. Você pode criar uma linha de táxi do bairro A para o bairro B porque há muitos usuários indo por esse caminho. Você não pode é discriminar usuários de táxi dizendo “não te levo para tal lugar”. Neutralidade é você ter a experiência integral da rede independentemente da velocidade que você contrata e sem discriminação de origem e destino. Quando o Netflix e a Comcast (em receita, a maior empresa de mídia do mundo) fazem uma conexão entre si, um dos primeiros prejudicados é o cara que venderia conexão para os dois. Eles economizaram ao se ligarem diretamente. A grita vem do setor afetado, e nem sempre isso é de interesse geral. Há sempre agendas aí no meio da história.

Há o grito para que se deixe o mercado regular a rede, que com a neutralidade ficaria impedida de privilegiar um vídeo pesado sobre uma mensagem de texto. Mas já não existem protocolos diferenciando esses conteúdos?

Sim, os protocolos já preveem isso. E, para dar um exemplo, nós éramos o segundo país com mais spam no mundo. Por quê? Porque tínhamos a porta 25 aberta, um monte de micros conectados dia e noite.Saía um monte de spam do Brasil, tudo em chinês. Descobrimos que o spam era gerado por chineses que vinham até aqui, batiam nas nossas máquinas, multiplicavam por mil e voltavam para lá.

Essa discussão foi de 2005 a 2012, não?

Sim. Fizemos uma campanha para fechar a porta 25, que é uma porta SMTP (protocolo para transmissão de e-mails) que vem naturalmente aberta. Você pode abusar dela. Certamente é uma quebra da neutralidade. Depois que conseguimos convencer as teles e a Anatel a fechá-la, mostrando que ninguém iria reclamar, que os usuários ficariam felizes, nós passamos a 25º no spam mundial, o que é excelente. Agora se escuta gente dizendo que, se o Marco Civil estivesse vigorando, não poderíamos ter fechado a porta 25.

Fornecer dados voluntariamente para um serviço pode ser vantajoso. Como equilibrar a gangorra entre privacidade e conveniência?

Se você não aceitar cookies, você terá de se reidentificar a cada página. É como ir na festa e não deixar o cara te carimbar. Toda vez que entrar e sair da festa, você tem de provar que é um dos convidados. Posso dizer que é uma violação de privacidade, ter um carimbo, mas pode ser uma comodidade. Se vou numa livraria que me reconheça (“olha, voltou o cara que sempre compra livros sobre ópera. Temos três novos livros sobre música”), para mim isso é um serviço, não viola a minha privacidade. Se não quero mais aquilo, eu digo: “Remova tudo isso”. Mas é um jogo que tem de ser consentido, tem de estar claro, tenho de ler e topar aquilo. Quando eu deixar de topar, tenho de poder cair fora. As pessoas são maiores e vacinadas. É fundamental que passem a ler os contratos.

E quando essa relação não é consentida?

O risco da privacidade é naquela região cinzenta onde os caras podem fazer coisas sem te avisar. A Inglaterra proibiu um software que anotava todas as URLs acessadas pelos usuários para mandar propaganda direcionada. Mas isso é uma invasão que não está em contrato nenhum e está em um contexto global, de navegação. É como o motorista de táxi que me trouxe até aqui querer saber sobre a minha palestra, quantos slides ela tem. Esse ponto eu acho que o Marco Civil defendeu bem: “Isso aqui está fora do seu contexto, você tem de levar o cara daqui para lá, você não tem de ver o que ele faz durante a navegação, apenas botar ele dentro da rede; se ele vai comprar batata, ler artigos sobre química, não é assunto seu”. A privacidade entre você e o provedor de aplicações é outra coisa. Vai depender da lei local. Se estou entrando numa loja de CDs na Alemanha, vale a lei local de lá. Não tenho como questionar, a minha lei é brasileira. Se não topar aquilo, não entro lá. Preciso saber qual é a lei para decidir se entro ou não. Ele pode dizer que vai anotar os meus dados para toda a eternidade. Isso é da legislação dele, não tenho como mexer. A aplicação é algo que depende da internet como um todo. Já a conexão é local. A conexão de Porto Alegre é feita aqui.

Como tratar a privacidade num contexto de “internet das coisas”, que promete conectar à internet objetos como eletrodomésticos?

É algo que virá, e temos de tomar cuidado. É uma excelente comodidade, e como toda comodidade há um preço a pagar. O preço a pagar certamente é a privacidade. Precisamos tomar extremo cuidado com isso. Hoje já é um problema. Nos Estados Unidos, tem até uma lei impedindo isso, mas há empresas que, antes de contratar alguém, dão uma checada no que ele andou escrevendo. Às vezes tem coisas mentirosas que estão lá onerando o cara. Tudo o que você colocar na rede jamais sumirá. Não acredito no direito ao esquecimento, isso nunca será implementado. De qualquer forma, você cada vez mais é analisado. Hoje é razoável esperar que uma empresa faça isso, se bem que não é razoável que ela faça isso. Com a internet das coisas, fica ainda mais claro. Na saúde, por exemplo: é importante que o seu prontuário esteja na rede. Se você está viajando e tem um piripaque, o cara tem de saber que você é diabético, RH positivo, quer dizer, é importante. Por outro lado, pode não ser tão importante que o seu empregador saiba que você é diabético e tem pressão alta.

O ganha-pão de diversos serviços é a venda de dados dos usuários. Ao abrir uma conta no Facebook, o sujeito se oferece como produto. O Marco Civil pesa um pouco mais a balança a favor da condição de usuário, e não de produto?

Essa parte é da internet global, o Marco Civil consegue pouco contra isso. O que ele vai conseguir é conscientizar você em relação a isso. E agir onde puder. Você tem a opção de escolher ou não entrar. Quando falo que não participo do Facebook, não vai nenhuma crítica aí. Não gosto, não participo, simplesmente, é um direito meu. Cada rede social tem regra própria. Não vou reclamar que o Facebook remova imagens de seios expostos porque, se isso faz parte do acordo do usuário e não gosto disso, eu não entro. Assim como não vou acessar um site que mostra um boi sendo esquartejado, se sou vegetariano. Não está errado: o cara está mostrando como se corta um boi, como tira uma alcatra e uma picanha. Se sou vegetariano, aquilo não me interessa. Se eu sou dono de um blog vegetariano e alguém publicar um boi sendo esquartejado, vou remover. Não é questão de censura, mas de regra do jogo. São regras perfeitamente razoáveis, o usuário tem de optar. Mas, se o ônibus me obriga a me identificar, ou se a rua me obriga a andar vestido de certa forma, aí já está invadindo uma outra esfera. Essa é uma distinção que o Marco Civil tem de fazer.

É comum ver brasileiros liderando rankings mundiais de tempo de uso das redes sociais. Tu arriscas uma explicação?

O brasileiro tem menos defesa em relação a isso. Os europeus são muito ciosos da sua privacidade, da sua intimidade. O brasileiro põe tudo na rede, depois reclama que saiu pelado em algum lugar. Somos muito abertos nessa área, o que é um ponto positivo, desde que não seja explorado indevidamente.

Você trabalhou na Agência Estado e no iG. Essa experiência te permite dizer se o jornal de papel vai desaparecer?

Pessoas do jornalismo e da mídia são muito interessantes. É um quadro bem tradicional, um mundo tradicional migrante. Isso do papel é uma ficha que cai aos poucos. Havia uma grande discussão, ramos muito avançados, como o pessoal da agência, e pedaços muito conservadores, que se refletem, inclusive, na crise do meio em geral. O New York Times tem uma solução, o Washington Post tem outra. Cada um tem uma solução. Acho que há um pouco de terrorismo. O papel não vai sumir, da mesma forma que o rádio e a TV não sumiram. Tudo vai interagir. Certamente, para você se informar, a internet é muito mais rápida. Para você pensar, ainda talvez o papel seja melhor que a internet, porque você precisa de meditação. Mas eu sou velho, então não vale muito a pena ouvir a minha opinião.

Sobre isso de idade: não te parece que a gurizada está mais preparada que os pais para se proteger na internet?

De fato, isso me surpreende. A impressão que dá é que esse pessoal é meio alienado e que, se você não tomar cuidado, eles vão cair nas esparrelas mais comuns. Você vê que, em geral, a grande quantidade de otários na rede são ainda os de meia idade. Os jovens não são tão otários assim. Eles escapam das armadilhas. Outro dia eu recebi um aviso de spam assim: “Você está sendo traído, veja as fotos”. Mas o cara é tão imbecil que mandou o e-mail com o sender (remetente) “eu”. Mandei para mim mesmo: “Olha, você está sendo traído, presta atenção”. Quer dizer, nem para acertar o sender o cara conseguiu.


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