Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

domingo, 25 de maio de 2014

A DEMOCRACIA ADMITE DISCURSOS DE INTOLERÂNCIA?


ZERO HORA 25 de maio de 2014 | N° 17807


LENIO LUIZ STRECK

DEMOCRACIA. Nem a liberdade de religião nem a de expressão deveriam pressupor a permissão para incitar o ódio



Qual é o limite da liberdade de expressão? Em nome dessa liberdade, é possível dizer qualquer coisa? Esta questão esteve na pauta por estes dias, envolvendo discursos de intolerância religiosa que circulam nas redes sociais. Vamos tentar entender o que aconteceu. Em face de uma série de vídeos na internet em que pastores de uma determinada igreja pentecostal promovem discursos de ódio e intolerância contra as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé), o Ministério Público Federal entrou com uma ação judicial para retirar tais vídeos do ar.

O juiz federal do Rio de Janeiro encarregado do caso negou a retirada dos vídeos, sob o argumento, em um primeiro momento, de que as “manifestações religiosas afro-brasileiros não se constituem em religião” e que a elas faltariam “traços necessários de uma religião”, como um “texto base”, a exemplo da Bíblia ou do Alcorão. Apontou, ainda, a ausência de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado. A pressão social foi grande contra a decisão e o juiz reexaminou a ação, dizendo que, agora, reconhecia que candomblé e umbanda eram religiões. Mas não mandou retirar os vídeos, dizendo que foram feitos ao abrigo da liberdade de expressão.

O juiz errou. E por quê? Porque não importa o que juiz pensa acerca do que seja ou não seja religião. Isso não depende dele. Há milhões de pessoas que acreditam na umbanda e no candomblé. E isso basta. A Constituição reconhece o pluralismo social e cultural e condena o racismo social, cultural e de classe, além de assegurar direitos culturais aos indivíduos e às comunidades ancestrais.

Sim, existe racismo cultural do mesmo modo que existe o “racismo comum”. Como indaga o jurista Marcelo Cattoni: “Faz algum sentido, para efeito de garantir a liberdade religiosa diferenciar manifestações religiosas e religião? Afinal, o que é liberdade religiosa e de crença num Estado Democrático, republicano, laico e protetor do pluralismo social e cultural?”.

O Supremo Tribunal Federal (STF), julgando o caso de Siegfried Ellwanger, que escrevera livros racistas, negou o sentido constitucional da liberdade de expressão a discursos de ódio, a expressões de preconceito e de discriminação de qualquer natureza. O juiz não sabia disso?

Nitidamente os tais vídeos configuram abuso de liberdade de expressão. São discursos de ódio e de intolerância. No mínimo, racismo cultural. Parafraseando Dostoiévski e sem fazer trocadilhos (e invertendo a frase), se Deus morreu, agora não podemos tudo...

A partir de um pretenso liberalismo, o juiz invoca a defesa da liberdade de expressão. Só que errou o alvo. Isto porque tanto a proteção da liberdade de religião e crença, quanto a tutela da liberdade de expressão não implicam indiferença do Estado para com esses campos. Explico melhor: há um erro de base naqueles que pensam que a liberdade de expressão representa uma espécie de direito absoluto em uma democracia: o esquecimento que a liberdade de expressão implica o exercício da tolerância. Como dizia o velho Kant – um baita liberal – a autoridade política, no campo da liberdade de religião, possui um direito negativo de preservar a comunidade política de toda influência que possa ser prejudicial à tranquilidade pública. Nesse passo, o Estado deve, por consequência, diz Kant, não permitir que a concórdia civil fique em perigo, seja pelas disputas internas, seja pelo conflito de diferentes religiões entre si, o que constitui, então, um direito de polícia. Ponto para o velho Imannuel!

Ou seja, diante de discursos que incitam o ódio e a intolerância, não podemos falar em exercício legítimo da liberdade de expressão. Aliás, por ocasião do julgamento do caso Ellwanger, chegou-se a sustentar que “judeu não era raça”, para descaracterizar o crime de racismo... Quer dizer que se “judeu não fosse raça”, os livros de Ellwanger poderiam ter sido publicados (por exemplo, Acabou o Gás)? Se judeu não é raça, o que mudaria? No caso aqui sob comento, o que muda se a umbanda é religião ou não? Quer dizer que, em sendo religião, pode ser vítima de discurso de ódio ou de intolerância ou de racismo cultural? Ou seja: ao que entendi, tanto faz se umbanda e candomblé são religiões, porque, em nome de liberdade de expressão, pode-se delas dizer o que se quiser! Ou entendi mal?

Numa palavra: na democracia tudo pode? Veja-se como, em nome da liberdade, vamos criando permissividades: de repente, sem qualquer aviso, São Paulo é vítima das greves de ônibus. Milhões de pessoas prejudicadas. Viva a liberdade de fazer greve! Viva a liberdade de expressão em poder fazer vídeos recheados de intolerância. Viva! E vamos logo passar a mão no traseiro do guarda! E as consequências desse “Deus morreu e agora pode tudo”? Bem, as consequências sempre vem depois... como dizia o genial Conselheiro Acácio, do romance Primo Basílio.

POR LENIO LUIZ STRECK | PROFESSOR TITULAR DA UNISINOS E PROCURADOR DE JUSTIÇA-RS


sábado, 24 de maio de 2014

SE MANDAR CALAR, MAIS EU FALO!


ZERO HORA 24 de maio de 2014 | N° 17806 ARTIGO


por Matheus Gomes*




Em junho do ano passado, eu e milhares de outros jovens saímos às ruas para reivindicar nossos direitos. Tínhamos como motivação o aumento das passagens. Nossas reivindicações cresceram e tomaram força. Ficou evidente para nós a contradição da construção de estádios luxuosos em um país onde a educação e a saúde são tão precários. Por reivindicar mudanças sociais, no dia 15 deste mês, o Judiciário abriu processo contra integrantes do Bloco de Lutas.

Fui às ruas e incentivei muitos dos meus amigos a fazerem o mesmo. Em poucos dias, nos tornamos milhares. Nos organizamos dentro do Bloco de Lutas, no qual militantes de movimentos sociais, estudantes, trabalhadores e filiados a partidos políticos encontravam um espaço para debater a realidade e se manifestar. Foi nesse espaço democrático que o movimento tomou força para mudar a realidade. Os governos tiveram que recuar e começar a “arrumar a casa”.

Mesmo sendo ativista das mobilizações, não compactuo com os black blocs. Milito em um partido que nacionalmente se colocou contra a “tática” black bloc. Para nós, quebrar vidraças só serve para justificar a repressão e isolar o movimento. Acabam por atrapalhar a construção de grandes manifestações e consequentes vitórias.

Um ano tendo se passado e às vésperas da Copa do Mundo, as contradições que apontávamos se tornam ainda mais evidentes. A promessa de um legado da Copa não passa de uma grande farsa. O legado para o povo se expressa nas remoções e serviços públicos que continuarão precários. O legado para mim e meu companheiro de partido, Gillian Cidade, bem como para os outros quatro ativistas do Bloco de Lutas, é um processo que nos indicia por formação de quadrilha por organizarmos protestos contras as injustiças sociais. O legado que esta Copa deixa é o do cerceamento das liberdades democráticas e a criminalização dos movimentos sociais. Como Gonzaguinha poetizou em sua música Recado: “Se mandar calar, mais eu falo”. Enquanto houver injustiças, continuarei lutando!


*INTEGRANTE DA EXECUTIVA NACIONAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL DOS ESTUDANTES LIVRE (ANEL)



quinta-feira, 22 de maio de 2014

A AFRONTA DO GREVISMO


ZERO HORA 22 de maio de 2014 | N° 17804


EDITORIAL


É generalizada a sensação de que faltam leis, bom senso e autoridade no cenário criado pelas greves que se disseminam pelo país, algumas com objetivos difusos ou intenções políticas camufladas sob pretensas reivindicações pontuais. Motoristas e cobradores de ônibus pararam em São Paulo, com transtornos irreparáveis para a população, policiais civis fazem paralisações em 10 Estados, provocando o aumento efetivo da insegurança, e técnicos administrativos bloquearam o acesso à Universidade de Brasília. Ganha forma, com iniciativas das mais diversas categorias, de professores a garis, a anunciada onda de paralisações na antevéspera da Copa, o que caracteriza uma ação articulada dos que desejam afron-tar governos, criar impasses para os últimos preparativos para o Mundial ou simplesmente transtornar a vida nas grandes cidades, para que a imagem do país no Exterior seja comprometida.

É evidente que a atitude desafiadora de grupos marcadamente oportunistas, resguardadas as exceções, foi viabilizada muito mais por uma sucessão de falhas do que pela coesão dos líderes paredistas. Falhou o governo ao não buscar a proteção de medidas capazes de assegurar o funcionamento de serviços essenciais antes e durante a Copa. Ignorou o Executivo as advertências de que deveria liderar uma mobilização no Congresso no sentido de finalmente definir os limites do direito de greve.

Falharam os parlamentares, que adiam indefinidamente a deliberação sobre esses limites, quando essa deveria, nas circunstâncias criadas por um acontecimento internacional, ser uma prioridade. E cometem falhas também os governantes estaduais e municipais, que não compartilharam esforços entre si e com o setor privado no sentido de evitar as paralisações ou pelo menos amenizar seus danos. É surpreendente que, no caso da greve dos profissionais dos ônibus em São Paulo, a reação mais categórica do prefeito Fernando Haddad tenha sido a de que o movimento é uma sabotagem com tática de guerrilha. O que se evidencia na paralisação dos motoristas e em outras áreas essenciais é que os governos não sabem nem mesmo com quem negociar, porque as lideranças, divididas, confundem os administradores.

Não se admite que o governante da maior metrópole do país confesse que não dispunha de informações sobre a possibilidade de paralisação, assim como o governo federal não pode desculpar-se com o mesmo erro em relação às greves dos seus servidores. Os protestos estão sendo propalados há muito tempo e contaminam, por efeitos diretos ou indiretos, atividades produtivas e o direito de ir e vir. Entre outras falhas na preparação do Mundial, as autoridades devem confessar que erraram também na gestão de crises anunciadas. Mas, se houver vontade política, ainda há tempo para uma reabilitação.

O PONTO DO DESEQUILÍBRIO


ZERO HORA 22 de maio de 2014 | N° 17804

ARTIGO
 Marcello Vernet de Beltrand*



O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirmou que o ser humano vive um paradoxo entre segurança e liberdade. Segundo ele, ninguém pode ter vida digna e feliz sem ambos, pois segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é caos. Reflexão muito apropriada diante da verdadeira onda de bestialismo que bafeja com intensidade crescente a rotina dos brasileiros.

Já faz 30 anos que o Brasil recuperou a liberdade perdida para o estado de exceção. Entretanto, no período o brasileiro viu o sistema prisional afundar, testemunhou a crise da Justiça que não mantém na cadeia malfeitores, notou que o crime organizou-se e observou um sentimento crescente de anomia na sociedade. Anomia significa um estado de coisas “sem nome”, sem pai, sem lei, sem ordem. Se refere a um ambiente social carente de ordenamento e órfão de referências capazes de iluminar a caminhada civilizatória.

Alguns poderão dizer que esse quadro se aplica a qualquer país, uma vez que liberdade e segurança também são contradições mundo afora. Ora, pergunte-se a um viajante que esteve no Uruguai, Inglaterra, Japão e China (numa citação aleatória entre pequenos e grandes países), se o que vivemos hoje no Brasil encontra paralelo. A resposta é mais não do que sim.

O interessante é que desejamos usufruir as vantagens da liberdade, como votar, exercer direitos, ir e vir sem prestar contas, opinar livremente sobre tudo e todos. Queremos toda a liberdade possível, mas queremos fazer tudo em segurança. Aqui está o paradoxo de Bauman – o ser humano ainda não encontrou a solução para essa dualidade.

A dor vivida pelos brasileiros que têm tomado contato direto com a insegurança é apavorante. E não há matéria-prima maior para fazer crescer no coração dos brasileiros o sentimento de que a liberdade pode ser sacrificada. Isso somente não ocorrerá se as elites políticas, econômicas, tecnológicas, jurídicas e culturais assumirem seu papel ajudando o Brasil a balancear corretamente liberdade com segurança.

*JORNALISTA, CONSULTOR E MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO









domingo, 18 de maio de 2014

SUA NUDEZ PODE SER CASTIGADA


ZERO HORA 18 de maio de 2014 | N° 17800

JAQUELINE SORDI

COMPORTAMENTO FOTOS NA INTERNET

NÚMERO DE DENÚNCIAS de jovens que tiveram sua intimidade exposta na web vem aumentando ao longo dos últimos anos. Índice, que dobrou no país de 2012 a 2013, pode ser ainda maior do que o registrado, uma vez que muitos adolescentes sentem vergonha em contar o fato aos pais



Um pesadelo real insiste em reaparecer na vida de Fernanda*. Na última semana, ao chegar em casa da faculdade, a jovem de 19 anos recebeu a ligação de um vizinho. Enquanto ele estudava no quarto de um colega da universidade – alguém que Fernanda nunca viu nem ouviu falar – se deu conta de que era ela quem estampava a tela do computador dele. Nas fotos, alertou o vizinho, aparecia em poses sensuais e com os seios à mostra.

Três anos antes, a jovem havia sido vítima do compartilhamento indevido de fotos íntimas, uma das consequências de um comportamento que vem crescendo exponencialmente entre os adolescentes: o Self Nude – mania de tirar fotos de si com partes íntimas expostas –, e o Sexting – envio de fotos nuas através de mensagem de texto ou aplicativos de celular, como o WhatsApp.

Fernanda sofreu e ainda sofre calada. Conforme o delegado Christian Nedel, da 1ª Delegacia de Polícia para o Adolescente Infrator, o número de denúncias de jovens que tiveram sua intimidade exposta indevidamente na internet vêm aumentando ao longo dos últimos anos, mas ainda é baixo em relação aos casos que ocorrem, já que muitos adolescentes, como Fernanda, sentem vergonha de contar aos pais sobre a situação ou desconhecem seus direitos.

Para a jovem, foi no final de 2011 que o drama começou. No dia de Natal, ela teve sua conta do Facebook invadida por colegas – que descobriram sua senha –, e fotos com os seios à mostra, que compartilhava com um grupo restrito de amigas, roubadas. As imagens rapidamente se espalharam entre o círculo de amigos, e de desconhecidos também.

Foi apenas na véspera da ceia natalina que Fernanda começou a perceber que algo estava errado. De férias do colégio, havia viajado para o Interior com a família. Apenas com o celular e sem sinal de internet, começou a receber ligações e mensagens com frases agressivas, de números de telefone que nem conhecia. “Você é uma vadia” e “sua vagabunda” foram alguns dos recados que apareceram em seu celular minutos antes do jantar. Depois de identificar a origem das agressões, veio a depressão.

– Eu sabia que não tinha feito nada de errado, já que tirei as fotos e compartilhei apenas com quem eu queria. Mas perdi o controle, e todo mundo acabou vendo. As pessoas foram tão agressivas que comecei a ficar muito triste – relembra.

*Nome fictício


sábado, 17 de maio de 2014

ENTRE ASAS E RAÍZES, O AVESTRUZ


ZERO HORA 17 de maio de 2014 | N° 17799 ARTIGO


 por A. Marcus F. Paim*



Na mesma edição, sem explicações razoáveis, desperdício de dinheiro público e vidas soterradas pela montanha de medicamentos vencidos conviviam com as eternas obras do aeroporto. Tudo bem, nossa indignação segue compartilhada. Baderneiros tiraram o povo das ruas, mas curtimos tudo nas redes e conversas de elevador.

A alguns de nós tem faltado equilíbrio. Apenas contra ou cegamente a favor. A ferida narcísica dos farrapos não cicatriza. Temos que ser melhores em tudo, ter razão o tempo todo. As falas fáceis e fartas deslumbram, mas não foram feitas para o mundo das coisas práticas. Onde há plateia, predomina a retórica como um fim em si.

Dói em nós a chaga do recesso ético e dos oportunistas de plantão. E temos os egoístas do curto prazo, que só refletem quando há risco imediato à própria pele. Mas numerosos mesmo são os membros da família Struthio camelus, o simpático avestruz. Absurdos se empilham sob o tapete e tudo segue como se a educação opaca, a estrada esburacada, a rotina de dramas pessoais e a insegurança coletiva fossem fenômenos naturais.

Não haverá mudança consistente sem o desconforto da luz sobre fatos e atitudes. Nenhum humano muda algo relevante, em si ou no ambiente, enquanto acha que está tudo bem. Sociedades não conseguem o resgate de si mesmas sem a coragem para ver. E não há quem se mexa com a cabeça afundada na terra fofa do faz de conta. Governantes só trabalham para a felicidade de quem os elege quando saem da emblemática posição do avestruz.

A troca de ideias tem que ser maior do que a de farpas. Já que conceitos são sempre menores do que a realidade que tentam retratar, que tal trocarmos o radicalismo adolescente pelo diálogo adulto? Ainda antes da Copa.

CONSULTOR DE EMPRESAS


quinta-feira, 15 de maio de 2014

PAPEL DE ESTABILIZADORES

FOLHA.COM 31/03/2014 - 11h00

Militares assumiram o papel de 'estabilizadores' na história do Brasil

da Livraria da Folha



Os militares de 1964 reivindicavam uma linhagem política que tinha origem no tenentismo –a insurgência no Forte de Copacabana e na Escola de Realengo–, na Coluna Prestes, no movimento de 1930, na Revolução Constitucionalista, na Constituinte de 1934 e em 1954, quando Getúlio Vargas cometeu suicídio.

Segundo Hélio Silva (1904-95), em "1964: Golpe ou Contragolpe?", os militares assumem a função de árbitro e estabilizadores quando julgam que o sistema existente está ameaçado.

"A origem política do 31 de março decorre a crise institucional já delineada desde os primeiros anos de vigência da Constituição de 1946", conta. "Essa crise tem como traço fundamental a separação cada vez maior entre a nação e sua representação, gerando episódios dramáticos que assinalam os últimos anos, sobretudo a partir de 1954".

Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, o Brasil estava em uma crise política, um desses períodos em que as Forças Armadas decidem que existe perigo para o país e que, principalmente, a sociedade não é capaz de lidar com o problema sozinha.

"Encontramo-nos, precisamente, naquele momento, em fase de carência de lideranças políticas, suscetíveis de conduzirem a uma saída institucional", diz. "E, na ausência delas, tenderia, naturalmente a preponderar o formalismo jurídico, que se expressava na posse ao eleito".

Jânio disse que "forças terríveis" –e não ocultas, como foi divulgado na época– conspiraram para tirá-lo do poder. Terrível ou não, essa "força" sinalizou a derrocada da democracia brasileira. João Goulart (1919-76), vice-presidente eleito, assumiu o cargo.

Divulgação

"1964: Golpe ou Contragolpe?" complementa o Ciclo de Vargas


Jango perdeu, gradativamente, apoio político. Ele era achincalhado pela direita e esquerda brasileira, mesmo por aqueles que não desejavam a ditadura militar.

"A posse de Jango era vetada por destacados chefes militares. Um grupo de líderes políticos, reunidos na casa do antigo ministro da Justiça do presidente Café Filho, José Eduardo do Prado Kelly, no próprio dia da renúncia, considerava a investidura do vice-presidente uma temeridade para as instituições".

Em "1964: Golpe ou Contragolpe?", o autor apresenta antigos personagens que circulavam no ambiente político e recupera os momentos que precederam a eclosão do regime militar.

Formado em medicina, Hélio Silva (1904-95) trabalhou como jornalista. Na década de 1930, já colunista influente, foi proibido de exercer a profissão, afastado no início da Era Vargas. Foi chefe da sucursal no Rio da "Folha da Noite", de São Paulo, e, em 1959, começou a publicar suas pesquisas sobre a história do Brasil.

Entre outros títulos, ele é autor de "1889 - A República Não Esperou o Amanhecer", "1922 - Sangue na Areia de Copacabana", "1926 - A Grande Marcha", "1930 - A Revolução Traída", "1931 - Os Tenentes no Poder", "1932 - Guerra Paulista", "1933 - A Crise no Tenentismo", "1934 - A Constituinte", "1935 - A Revolta Vermelha", "1937 - Todos os Golpes se Parecem", "1938 - Terrorismo em Campo Verde", "1939 - Vésperas de Guerra", "1942 - Guerra no Continente", "1944 - O Brasil na Guerra", "1945 - Por que Depuseram Vargas" e "1954 - Um Tiro no Coração"

"1964: Golpe ou Contragolpe?" faz parte de um exercício de relatar a trajetória da República, nascida nos fins do século 19 e vitima de golpes e insurreições que contradizem o espírito cordial dos brasileiros.

Hélio Silva fez voto de pobreza e recolheu-se ao Mosteiro de São Bento, no Rio, no início dos anos de 1990.


1964: GOLPE OU CONTRAGOLPE?
AUTOR Hélio Silva
EDITORA L&PM Editores

DIREITO DE IR E VIR AMEAÇADOS




FOLHA.COM 15/05/2014 02h00


Otávio Vieira da Cunha Filho



Atos de de vandalismo têm atormentado o país. Motoristas, trabalhadores, passageiros e empresários do setor de transporte público urbano convivem com a insegurança.

Episódios como o de São Luís (MA), com a morte da menina Ana Clara Santos Sousa, após a queima do coletivo em que ela estava, ou em Osasco (SP), quando funcionários foram rendidos e 34 ônibus foram incendiados em uma garagem, nos fazem pensar onde tudo isso vai dar. Existe um plano de segurança pública para conter essa violência? Se há, não é o que parece.

Desde 2004, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) vem acompanhando o aumento do número de incêndios no transporte coletivo urbano em pelo menos 19 cidades brasileiras. Só nos quatro primeiros meses de 2014, a quantidade de veículos atingidos por esse tipo de ação já é mais que o dobro do que o registrado em todo o ano de 2012 e supera os casos contabilizados em 2013, que totalizaram 103.

Na contramão do que deveria ser um direito, aqueles que destroem bens públicos acabam por inverter a lógica dos fatos e gerar mais custos para o Estado e, consequentemente, para os próprios cidadãos. É um saldo perverso que todos, de um jeito ou de outro, absorvemos, seja pelo sentimento de insegurança, seja pela ignorância dos reais direitos da população, seja pelos prejuízos a um serviço público vital à sociedade.

O preço moral e material dessas atitudes alerta para que medidas urgentes sejam tomadas. O custo médio estimado para repor um ônibus pode variar de R$ 300 mil a R$ 1 milhão. E esse preço, arcado unicamente pelos empresários, fica em segundo plano se comparado ao valor das vidas em risco.

Cabe alertar que um ônibus depredado representa pouco diante da enorme proporção que a falta de segurança pode assumir quando inviabiliza um serviço essencial ao cidadão e aos turistas que chegam para assistir aos jogos da Copa.

Como poderemos ser bons anfitriões se não pudermos garantir o mínimo de conforto e segurança no transporte público urbano, que vem sendo alvo indiscriminado da insanidade de vândalos?


OTÁVIO VIEIRA DA CUNHA FILHO, 74, é presidente-executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU)


quarta-feira, 14 de maio de 2014

SEM-TETO DE TODO O MUNDO, UNI-VOS


Sem-teto invadem terreno próximo ao Itaquerão, em São Paulo
Foto: Michel Filho / O Globo

O GLOBO 14/05/2014

Elio Gaspari



Ouvir o que diz o MTST pode não resolver o problema habitacional das grandes cidades, mas ajuda a discuti-lo

Três dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto produziram um artigo intitulado “O que quer o MTST?”. E responderam: querem “movimentos populares de massa, que enfrentam as relações de poder constituídas. Chamamos a isso poder popular. É isso que quer o MTST”.

O que vem a ser um poder popular, não se sabe e coisa boa não há de ser. Mesmo assim, os argumentos dos militantes devem levar as pessoas que não gostam deles a refletir. Desde 2008, os aluguéis subiram 97% em São Paulo e 144% no Rio de Janeiro, contra uma inflação acumulada de 40%. Esse movimento da mão invisível do mercado tange pessoas de mais baixa renda para a periferia longínqua ou para as comunidades desprovidas de serviços públicos.

Nem todos aqueles que estão em dificuldades para conseguir um teto participam de invasões de terrenos. Ainda bem. Em São Paulo, o MTST organizou 12 invasões e o Rio assistiu à ocupação de uma área abandonada que pertenceu à Telerj. Invasões são mais vitrine do que solução. Tanto é assim que o MTST blindou a invasão de um terreno próximo ao estádio onde será aberta a Copa depois que nele colocou quatro mil famílias. Seguindo a lógica do mercado, como as demais imobiliárias, abriu um cadastro para candidatos. Conseguiram uma conversa com a doutora Dilma e, como sempre, uma promessa. Demagogia de ano eleitoral. Nem ela dará teto aos quem não o têm nem o MTST ficará contente enquanto não conseguir o “poder popular”.

Essa cena ocorreu na mesma semana em que o controlador-geral da cidade de São Paulo se reuniu com o sindicato da habitação, o Secovi, e reclamou por que até hoje nenhuma empresa do setor imobiliário procurou o poder público para colaborar com a investigação de fraudes em cobranças municipais. Leia-se propina.

As grandes cidades brasileiras foram capturadas por um contubérnio de empresários, burocratas, políticos e uma boa parte da população que não quer pobre por perto. Salvo os empresários, todos reclamam do que seria a “especulação imobiliária”, mas quando um apartamento dobra de valor, atribui-se a variação à clarividência de quem o comprou.

Os programas municipais de legalização de lotes urbanos andam devagar, quase parando. A porcentagem de proprietários nessas comunidades pobres é alta, mas esse capital está congelado. Não serve como garantia para empréstimos bancários. Num chute, pode-se estimar que no Brasil essas propriedades valham mais de R$ 50 bilhões.

A ideia segundo a qual uma família terá acesso à casa própria invadindo um terreno é tóxica e insuficiente. O cadastro do MTST está aí para provar isso. Contudo, a ideia de que cidades como o Rio e São Paulo possam tanger os pobres para as terras dos sem-serviços é veneno puro.

Ano eleitoral tem a virtude de expor os problemas. Refletir em torno dos argumentos do MTST pode ser um bom começo. Perguntar aos candidatos o que pretendem fazer pode não adiantar muito, mas servirá como um alerta: não votar em quem promete pura e simplesmente construir mais casas populares. Essa é a resposta fácil e, como se sabe, enganadora.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

MAGNATAS DE CASSINOS DOS EUA DISPUTAM MERCADO DO JAPÃO


Só com dois gigantes americanos, investimentos poderiam chegar a US$ 15 bilhões em Tóquio e Osaka. País deve avançar este ano em projeto que autoriza jogos de azar

REUTERS
O GLOBO
Atualizado:12/05/14 - 10h24


Sheldon Adelson, de 80 anos, dono de cassinos em Las Vegas: fortuna de US$ 39 bilhões Yuya Shino / Reuters


OSAKA/TOKYO - Dois bilionários americanos estão apostando em cidades rivais japonesas, Tóquio e Osaka, para serem os primeiros a abrir resorts com cassinos assim que o governo der sinal verde para legalizar o mercado de jogos de azar. O Japão é um dos últimos mercados inexplorados de jogos do mundo e pode se tornar o terceiro maior destino no segmento depois de Macau e Estados Unidos, com uma receita anual de mais de US$ 40 bilhões, de acordo com a consultoria CLSA.

Congressistas que apoiam a legalização dos cassinos esperam que uma primeira versão do projeto de lei fique pronto este ano, com a abertura do primeiro resort em 2020, quando Tóquio for sede dos Jogos Olímpicos.

Na corrida para ser o primeiro a se instalar no país, Neil Bluhm, de 76 anos, magnata do mercado imobiliário em Chicago, concentrou suas atenções em Osaka, enquanto o magnata do jogo de Las Vegas Sheldon Adelson, quatro anos mais velho, investe suas fichas num resort em Tóquio. Bluhm é dono de cassinos na Pensilvânia, em Chicago e nas Cataratas de Niágara e é dono de uma fortuna de US$ 2,6 bilhões, segundo a “Forbes”.

O ex-advogado acredita que Osaka, uma das “cidades-irmãs” de Chicago, tem o tipo flexível de governo local que vai ajudar a viabilizar seu projeto e, principalmente, tem locais adequados para a instalação de cassinos. Ele diz que todo processo — desde a aprovação até a construção — em Tóquio será mais complexo, mais demorado e mais caro.

Adelson não descartou uma investida em Osaka também, mas vê Tóquio como o prêmio principal, diante de sua população de 13,2 milhões de pessoas. O diretor executivo da Las Vegas Sands Corp, que, segundo a “Forbes” tem uma fortuna em torno de US$ 39 bilhões, se comprometeu a gastar US$ 10 bilhões no Japão, oferta que ele diz que seus rivais não podem igualar.

Em um relatório recente, o banco Morgan Stanley previu que um cassino resort com custo acima de US$ 5 bilhões poderia garantir um retorno abaixo de 20% por causa de custos em alta e da dificuldade em atrair clientes ricos da China. O grupo Sands, que tem cassinos em Macau, Singapura e Las Vegas, permanece otimista em relação a seus planos no Japão por causa da parcela rica do país e de sua proximidade com a China.

— Estamos muito confiantes em nossa capacidade de gerar um retorno que seria satisfatório para nossos acionistas — afirmou George Tanasijevich, diretor de desenvolvimento global, sem dar mais detalhes.

Bluhm, por sua vez, diz não se importar com as estimativas dos altos custos para se instalar no Japão.

— Algumas vezes as pessoas jogam grandes números ao vento. Nossa estimativa para Osaka fica entre US$ 4 bilhões e US$ 5 bilhões — afirmou ele.

Bluhm também acha que ele pode ter uma vantagem sobre as grandes operadoras em Macau — que, para ele, preferem Tóquio — por trabalhar com parceiros locais.

— Na realidade, eles vão querer levar todo o projeto à frente e provavelmente não estão acostumados a parcerias com nós estamos — afirmou.

O governo de Osaka está interessado em operadores estrangeiros para formar consórcios ou joint-ventures com empresas japonesas, informou Masayuki Inoue, diretor geral do escritório de planejamento econômico da cidade, que frisa que Osaka quer um grande hotel-casino com instalações para convenções de empresas e entretenimento:

— A cidade de Osaka é flexível. Estamos prontos a discutir qualquer coisa.

A Kansai Keizai Doyukai, consultoria líder local, avalia que os custos de terrenos na cidade serão de um décimo dos de Tóquio, que fica a 250 quilômetros. E afirma que a cidade pode oferecer uma área três vezes maior que a ocupada por dois cassinos em Cingapura, o Marina Bay Sands e o Resorts World Sentosa.

Entre os moradores de Osaka, 56% afirmaram que abril que aprovavam a instalação de um grande cassino e resort na cidade, cuja ~fama é de ser mais festiva que Tóquio. Autoridades locais inclusive já indicaram o local preferido para a construção.

Em comparação, Tóquio, que já prepara sua estrutura para os Jogos de 2020, parece em ritmo mais lento. Industriais demonstraram preocupações de que tudo está tão focado na preparação para as Olimpíadas que a questão dos cassinos ficou para segundo plano. O governador de Tóquio, Yoichi Masuzoe, ex-ministro da Saúde, sequer revelou se tentará uma licença para algum cassino se instalar no local.

— Não somos como Osaka e Yokohama. Nós ainda não pisamos no acelerador e dissemos “vamos” — afirmou à Reuters um representante do governo local Yukimasa Saito

Uma área à beira-mar chamada Odaiba, em Tóquio, vem sendo apontada como um local adequado para qualquer cassino no capital, mas o desafio será conseguir um terreno grande o suficiente. Atualmente, cerca de 14 hectares estão disponíveis para venda. Ao mesmo tempo, o governo informou que pretende leiloar um lote de 2,7 hectares em Odaiba para uma concessão de 10 anos, o que tiraria a área das possibilidades dos investidores de cassinos.

Em Osaka o cassino é visto como uma chance de impulsionar o turismo no Japão além de Tóquio. A cidade fica a apenas meia hora da ex-capital imperial Kioto e do centro de comércio Kobe. Outros centros regionais, como Sasebo no sul e Otaru, cidade portuária, também afirmaram cassinos seriam bem-vindos para aumentar o turismo.

Mas nenhuma estão tão avançada no processo quanto Osaka, onde uma das saudações locais comuns é “mokari makka?”, o que significa “Você está ganhando dinheiro?”

Para Yusuke Sawada, um arquiteto de 30 anos de idade, um cassino pode ser um impulso para as empresas locais em Osaka.

— Se os cassinos vierem, podem trazer mais turistas para gastar muito dinheiro. Osaka tem muito menos dinheiro do que Tóquio, precisamos mais.

ASSASSINOS!


O Estado de S.Paulo 11 de maio de 2014 | 2h 15


Roberto Romano



Os deuses têm sede de sangue e dirigem a multidão, como enuncia Elias Canetti, rumo à horda de caça ou de fuga. Os gestos da matilha humana reiteram milênios de preconceitos, calúnias contra minorias, genocídios programados por dirigentes religiosos ou políticos. O assassinato de Fabiane Maria de Jesus, acusada de magia negra e uso de crianças em rituais satânicos, repete a brutalidade do "homem, lobo do homem".

Vejamos os antecedentes históricos daquela tragédia, examinemos o sacrifício ritual de crianças. O fato é antigo como a sociedade humana: destruir, oferecer, consagrar são os elementos do sacrifício que, segundo o clássico antropólogo Marcel Mauss, tende a verter o sangue da vítima voluntária ou designada "para dar um sentido à coletividade e a transformar num todo comunitário" (Marie-France Rouart). Não existe ordem humana sem a tremenda sombra da morte inocente, mostra René Girard (A violência e o sagrado). Quando a Igreja era jovem, os escritores pagãos viam na missa uma celebração do sacrifício humano. As frases da fé (Hoc est corpus meum, Hic est enim calix sanguinis mei), ao afirmar a real presença de Cristo, suscitaram iras, criaram boatos sobre a comunidade (Wilken R. L., The Christians as the Romans Saw Them). Os advogados da Igreja, entre eles Tertuliano, rebateram as acusações de canibalismo infantil asseverando que a prática pertencia, de fato, aos pagãos. "Para melhor refutar tais calúnias, mostrarei que sois vós que cometeis aqueles crimes, publicamente ou em segredo. Talvez seja por semelhante motivo que os atribuís a nós" (Ad Nationes).

Tácito ataca cristãos e judeus no mesmo átimo, afirmando que os segundos teriam criado o costume de sacrificar infantes. Tito Lívio aproxima os sacrifícios cristãos das bacanais. Mas todos eles partem de um recurso depois recusado pela historiografia: escreveram "por ouvir dizer"(audivimus). Desgraçadamente, aquele modo de informação - o mais baixo de todos, segundo Spinoza - ainda presta serviços à infâmia das massas e de seus líderes. Ele foi usado na modernidade contra bruxas e judeus. Alguns escritores do século 19 chegaram ao máximo descompromisso com a verdade ao asseverar: "O que se adora no gueto não é o Deus de Moisés, é o horrível Moloch fenício para o qual é preciso vítimas humanas, crianças e virgens" (Drumont, Édouard: La France Juive, 1886).

Judeus e ciganos foram as maiores vítimas (com as mulheres acusadas de bruxaria) da massa delirante. No século das Luzes, Voltaire defendeu Calas, um pai acusado de assassinar o próprio filho por motivos religiosos. A boataria causou o esquartejamento do genitor sem culpa. Temos aí as ondas malditas do ódio recíproco entre católicos e protestantes. Houve muito boato sobre canibalismo na Guerra dos 30 Anos, a partir de casos isolados.

A propaganda adquire forma assassina quando massas são por ela preparadas para o massacre do "inimigo", inferior e criminoso por definição. Os nazistas semearam em sólo fértil. Mas os preconceitos receberam sanção positiva de intelectuais sectários. Mesmo Jean Bodin redigiu um tratado terrível intitulado A demonomania dos feiticeiros que ajudou a adubar o terreno do fanatismo. Muito instrutivo, a propósito, o livro recente que traz os trabalhos de um seminário sobre o tema: Os textos judeofóbicos e judeófilos na Europa Cristã da modernidade, dirigido por Daniel Tollet. Ali é clara a presença do antissemitismo cristão, com acusações de sacrifício ritual dirigidas aos judeus, algo retomado mesmo no século 19. Quem tiver estômago, leia a Bula Cum nimis absurdum, do papa Paulo 4 (14/7/1555). Os judeus seriam arrogantes criminosos que mereceriam a prisão no gueto, "sem direito de propriedade sobre sua própria casa, obrigados a usar um signo distintivo de cor amarela, sem trato comercial com os cristãos, proibidos de exercer profissões liberais" (Charles Molette). Não por acaso, a Bula foi invocada em 1942 para justificar as medidas policiais antissemitas da República de Vichy, no Bulletin Religieux de l'Archidiocèse de Rouen (25 de agosto de 1942). O bulletin, é verdade, foi proibido pelo arcebispo Pierre Petit, mesmo sob ameaças dos alemães. Mas ele era redigido por acadêmicos e clérigos ligados à massa "piedosa". Tais coisas entram no mesmo clima do boato maldito cujo nome é Os Protocolos dos Sábios de Sião.

Após a guerra doutrinária do caso Dreyfus, quando um inocente foi punido para salvar a razão estatal francesa, tivemos muitos outros exemplos de atitudes coletivas hediondas. Nem sempre o linchamento se justificou pelo sacrifício físico de crianças ou virgens. Ele serviu, nos embates sobre a pedofilia, para encobrir as piores injustiças e crueldades. Acaba de falecer um proprietário da Escola de Base, após as agressões mais brutais da massa ensandecida, da imprensa e mesmo de setores policiais e políticos. Ainda seguindo Spinoza: estamos longe da situação social em que os que pagam imposto assumem a si mesmos como "povo" e não como "vulgo". Boa parte de tal inferioridade se deve aos vampiros políticos, nutridos de populismo, corrupção, truculência, arrogância. A lentidão e a distância que mantêm a Justiça longe da vida civil ajudam poderosamente a fábrica de linchamentos em nosso país. Sem juízes que realmente decidam em tempo certo, com base na lei, fica a tentação do justiçamento e da barbárie.

O horror nazista recomeça no mundo e no Brasil. O antissemitismo, sua fonte maior, tem novos ensaios nos massacres cometidos por "justiceiros" movidos por alguns jornalistas, blogueiros e redes sociais. No jornal Zero Hora, de Porto Alegre, matéria gravíssima denuncia: Ameaça do neonazismo persiste no Rio Grande do Sul (2/5/2014). Quem lincha incentivado por rumores e com fundamento no preconceito pode perfeitamente aplaudir o massacre de milhões. Profético Rimbaud: "Eis o tempo dos assassinos".

*Professor da Universidade Estadual de Campinas, é autor de "O Caldeirão de Medeia" (perspectiva)

sábado, 10 de maio de 2014

DEVO, NÃO NEGO, PAGO QUANDO PUDER


BLOG DIREITO ATUALIZADO, DEZ 2013.


JHONE SANTOS


A expressão popular descreve a situação financeira de muitos consumidores brasileiros diante dos bancos, financeiras, prestadoras de serviço e comércio em geral.

Dados recentes da Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, realizada pela Confederação Nacional do Comércio, revelam que o percentual de famílias com dívidas ou contas em atraso subiu em novembro de 2013, em comparação com o mesmo mês de 2012.

Já a Serasa Experian, empresa especializada na administração de informações de crédito, divulgou que, no acumulado de janeiro a outubro de 2013, o índice de inadimplência do consumidor recuou0,6% na comparação com o mesmo período do ano anterior, a primeira queda desde o início da apuração, em 1999.

Em outra pesquisa, realizada em 2012 com aproximadamente mil consumidores, a Serasa Experian apontou que 25% dos entrevistados se declararam inadimplentes. Destes, 38% admitiram não ter ideia do valor total das contas ou parcelas em atraso. E 60% dos devedores afirmaram que normalmente falta dinheiro no fim do mês e quase a metade de sua renda mensal está comprometida com dívidas.

As constantes ofertas de crédito e facilidades de pagamento divulgadas diariamente incentivam os consumidores a assumir compromissos além de sua capacidade e acabam por levar grande número deles aos temidos cadastros de inadimplentes. Muitas dessas situações chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Obrigação do credor

Em recente julgamento, a Quarta Turma do STJ concluiu que o ônus de baixar a inscrição do nome do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito é do credor, e não do devedor. A tese foi aplicada no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 307.336, cujo relator foi o ministro Luis Felipe Salomão.

O recurso envolveu a Sul Financeira e um consumidor cujo nome foi mantido indevidamente em cadastros de proteção ao crédito. Os ministros mantiveram o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que condenou a financeira a pagar indenização no valor de R$ 5 mil ao consumidor, por danos morais, em virtude da não retirada imediata do seu nome dos cadastros.

Salomão invocou o artigo 43, parágrafo 3º, e o artigo 73, ambos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), para embasar sua conclusão. Esse último dispositivo caracteriza como crime a falta de correção imediata dos registros de dados e de informações inexatas a respeito dos consumidores.

Correção dos registros

A posição a respeito da obrigação do credor de providenciar a retirada do nome do devedor dos cadastros de inadimplentes, após a quitação da dívida, é entendimento pacífico nas Turmas que compõem a Segunda Seção, conforme o exposto pela ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial (REsp) 1.149.998.

O recurso envolveu um consumidor e a empresa de telefonia e internet Global Village Telecom – GVT. Após ter conhecimento de que seu nome havia sido incluído em cadastro de inadimplentes, o recorrente quitou o débito que originou a inscrição. Decorridos 12 dias, o consumidor fez pedido de cartão de crédito a uma instituição financeira mas a solicitação foi rejeitada, pois seu nome ainda fazia parte dos registros do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), em virtude do débito quitado com a GVT.

Tal situação gerou o ajuizamento de ação de indenização por danos morais pelo cliente.
Ao se pronunciar sobre a lide, o tribunal gaúcho afirmou que as providências a serem tomadas para retirada do nome dos cadastros de inadimplentes cabiam ao autor, sendo exigido do credor “tão somente a conduta de não impor embaraços, o que se entende por satisfeito pelo fornecimento de recibo a autorizar a baixa do assento”.

Entretanto, de acordo com a ministra Nancy Andrighi, a melhor interpretação do artigo 43, parágrafo 3o, do CDC é a de que, uma vez regularizada a situação de inadimplência do consumidor, deverão ser imediatamente corrigidos os dados constantes nos órgãos de proteção ao credito, sob pena de ofensa à própria finalidade dessas instituições, visto que elas não se prestam a fornecer informações inverídicas a quem delas necessite.

“Induvidoso, portanto, que cabia à GVT ter procedido à baixa do nome do recorrente nos registros do SPC”, afirmou.

Prazo

Ao dizer que a correção deve ser feita “imediatamente” ou “em breve espaço de tempo”, por vezes, os julgados deixam dúvidas quanto ao prazo a ser considerado pelo consumidor para cobrar de maneira legítima a efetiva exclusão do seu nome dos cadastros de inadimplência. Da mesma forma, os credores ficam sem um balizador para adequar seus procedimentos internos, de modo a viabilizar o cumprimento da exigência.

A solução pode ser extraída do próprio parágrafo 3o do artigo 43, conforme explica a ministra, pois ele estabelece que “o consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas”.

Dessa forma, “é razoável que o prazo de cinco dias do artigo 43, parágrafo 3o, do CDC norteie também a retirada do nome do consumidor, pelo credor, dos cadastros de proteção ao crédito, na hipótese de quitação da dívida. Por outro lado, nada impede que as partes, atentas às peculiaridades de cada caso, estipulem prazo diverso do ora estabelecido, desde que não se configure uma prorrogação abusiva desse termo pelo fornecedor em detrimento do consumidor”, ponderou Nancy Andrighi.

Após a demonstração da negligência da GVT na exclusão do nome do recorrente dos cadastros, o STJ aplicou o entendimento consolidado, segundo o qual “a inércia do credor em promover a atualização dos dados cadastrais, apontando o pagamento e, consequentemente, o cancelamento do registro indevido gera o dever de indenizar, independentemente da prova do abalo sofrido pelo autor, sob forma de dano presumido”, conforme preconizado no REsp 957.880, de relatoria do ministro Villas Bôas Cueva.

Notificação prévia

Em julgado de relatoria da ministra Isabel Gallotti (AREsp 169.212), a Quarta Turma entendeu que a Serasa e o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), quando importam dados do Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF) do Banco Central (Bacen) para inscrição do nome do consumidor em seus cadastros, têm o dever de expedir notificação prévia.

O recurso tratava de demanda entre um consumidor e o Banco Itaú. O correntista afirmou que era nula a sua inscrição nos cadastros restritivos de crédito, pois ele não havia sido comunicado previamente pelo Itaú. Entretanto, a tese adotada pelo STJ é de que a obrigação de comunicar a inscrição em órgão de proteção ao crédito “é da entidade cadastral e não do credor”, ressaltou a ministra.

De acordo com Gallotti, o disposto no artigo 43 do CDC, apontado por violado no recurso especial, dirige-se à entidade mantenedora do cadastro de proteção ao crédito e não ao credor ou à instituição bancária.

O entendimento adotado pela Corte foi o mesmo ao julgar recurso que questionava o ressarcimento de um cliente por danos morais, em razão da falta de comunicação prevista no artigo 43, parágrafo 2º, do CDC. Nesses casos, o STJ entende que a legitimidade para responder por dano moral é do banco de dados ou da entidade cadastral, aos quais compete fazer a negativação que lhe é solicitada pelo credor (Ag 903.585).

Após consolidar a jurisprudência sobre esse ponto, o STJ editou a Súmula 359, que dispõe que a entidade mantenedora do cadastro de proteção ao crédito é que deve notificar o devedor antes de proceder à inscrição.

Recurso repetitivo

Em virtude da multiplicidade de recursos que discutiam indenização por danos morais decorrentes de inscrição do nome do devedor nos cadastros de restrição ao crédito com ausência de comunicação prévia, em especial nos casos em que o devedor já possui outras inscrições nos cadastros, o REsp 1.061.134 foi utilizado como representativo de controvérsia e julgado de acordo com o artigo 543-C do Código de Processo Civil.

O recurso versava sobre o caso de um consumidor que pediu o cancelamento do registro de seu nome dos cadastros de inadimplentes e pleiteou danos morais em razão da falta de prévia comunicação pela Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL). O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não acolheu os pedidos, pois considerou que o devedor possuía diversos registros desabonadores, que evidenciavam a reiteração da conduta.

Legitimidade

O recurso serviu para a consolidação de alguns entendimentos sobre legitimidade para responder em ação de reparação de danos, caracterização do dever de indenizar e inadimplência contumaz.

Sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Segunda Seção firmou o entendimento de que a entidade que reproduz ou mantém cadastro com permuta de informações entre bancos de dados pode responder em ação indenizatória.

Nesses casos, “o órgão que efetuou o registro viabiliza o fornecimento, a consulta e a divulgação de apontamentos existentes em cadastros administrados por instituições diversas com as quais possui convênio, como ocorre com as Câmaras de Dirigentes Lojistas dos diversos estados da federação entre si”, observou a ministra.

O colegiado firmou a posição de que o Banco Central não é parte legítima para responder em ações de indenização por danos morais e materiais pelo fato de manter o CCF, pois o cadastro é de consulta restrita. Segundo a relatora, os dados do CCF apenas podem ser acessados em virtude da reprodução de seu conteúdo por outras mantenedoras de cadastros restritivos de crédito.

Dano moral

No mesmo recurso, a Segunda Seção pacificou a tese de que, para a caracterização do dever de indenizar, é suficiente a ausência de prévia comunicação, mesmo quando existente a dívida que gerou a inscrição. “O objetivo da notificação não é comunicar o consumidor da mora, mas sim propiciar-lhe o acesso às informações e preveni-lo de futuros danos”, explicou Nancy Andrighi.

Todavia, o dever de indenizar sofre tratamento específico quando o consumidor possui inscrições preexistentes, regularmente realizadas em cadastros restritivos de crédito. O pensamento foiinaugurado no julgamento do REsp 1.002.985, de relatoria do ministro Ari Pargendler, que considerou que “quem já é registrado como mau pagador não pode se sentir moralmente ofendido pela inscrição do seu nome como inadimplente em cadastros de proteção ao crédito”.

Inadimplente contumaz

A existência de outras inscrições em nome do devedor afasta, portanto, o dever de indenizar por danos morais. De acordo com Pargendler, para que seja caracterizado o dano moral, “haverá de ser comprovado que as anotações anteriores foram realizadas sem a prévia notificação do interessado”.

Nesse sentido foi julgado o REsp 1.144.272, de relatoria da ministra Isabel Gallotti. O recorrente teve seu nome inscrito em cadastro de inadimplentes, sem notificação prévia, em virtude da emissão de dez cheques sem fundos em apenas um mês.

O Tribunal de Justiça da Paraíba considerou indevida a indenização por danos morais decorrente da inscrição irregular, quando o devedor já possui anotações anteriores. E determinou apenas a exclusão de seus dados do cadastro de maus pagadores.

Insatisfeito, o devedor recorreu ao STJ. Alegou que tinha direito à indenização. O STJ ratificou a tese do tribunal de origem, pois entende que a ausência de prévia comunicação ao consumidor atrai a compensação por danos morais, salvo quando preexista inscrição desabonadora regularmente realizada.

No julgamento, foi citada a Súmula 385, que dispõe que, da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento do registro.

Fonte: STJ


http://www.jhonesantos.com.br/2013/12/devo-nao-nego-pago-quando-puder.html

LIBERDADE CONTRA A LEI

DIREITOS FUNDAMENTAIS.NET, Abril 2, 2014 

por George Marmelstein Lima




O propósito deste post é analisar uma possível evolução no conceito de liberdade. Indo direto ao ponto: defenderei que a liberdade deixou de ser um direito cujo exercício estaria condicionado ao respeito à lei para se transformar em um limite jurídico ao próprio legislador. Se antes um comportamento contrário à lei era visto como um abuso da liberdade, hoje, em determinadas situações, a desobediência à lei pode ser considerada juridicamente legítima, desde que se reconheça que o legislador interferiu arbitrariamente em uma esfera pessoal protegida pela liberdade e, portanto, imune ao controle estatal. Para compreender essa mudança de sentido da liberdade conforme à lei para a lei conforme à liberdade, e as consequências de tal (r)evolução, é preciso aprofundar um pouco mais…

A ideia de que o ser humano deve ser o autor da própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo é recente. Foram os pensadores liberais da modernidade, especialmente Locke e Kant, que desenvolveram com mais profundidade essa concepção de liberdade fundada na autonomia pessoal. Antes disso, a concepção de liberdade que se tinha era aquela que Benjamin Constant designou de “liberdade dos antigos”, que nada mais era do que a liberdade de participação na vida pública. O cidadão da Antiguidade era livre para deliberar sobre a decretação de uma guerra, mas não era livre para escolher sua religião, nem mesmo para cuidar do seu filho. Quase todos os aspectos da vida privada – da família ao lazer, da propriedade ao trabalho, da religião ao comércio – eram de algum modo controlados pela polis, como bem demonstrou Fustel de Coulanges em seu indispensável A Cidade Antiga.

A passagem da “liberdade dos antigos” para a “liberdade dos modernos” envolve o amadurecimento da ideia de laicidade do estado. De fato, quando os papéis do estado e da religião sobrepunham-se, pouco restava ao indivíduo em termos de autonomia. O estado, através da legislação, institucionalizava abertamente a moral religiosa, utilizando a força das instituições para impor um padrão moral uniforme para toda a sociedade. A pessoa era obrigada a renunciar as suas convicções quando esta se chocava com os valores oficialmente impostos. A derrocada do álibi teológico que dava suporte ao estado, justificando as mais arbitrárias interferências estatais na vida privada, possibilitou a valorização da liberdade no sentido moderno, influenciada, no campo teórico, pela sublimação da autonomia como parte integrante da dignidade humana. Em palavras menos rebuscadas: o estado perdeu grande parte de sua legitimidade para agir como um sacerdote moral da sociedade, proporcionando a abertura necessária para que o indivíduo começasse a assumir a condição de sujeito ético responsável por suas escolhas e ações.

Mas os pensadores liberais modernos, mesmo exaltando a autonomia pessoal e reconhecendo a íntima conexão entre o poder de autodeterminação individual e a dignidade do ser humano, não foram capazes de desenvolver uma fórmula institucional apta a garantir efetivamente a proteção da liberdade individual. No fundo, a liberdade era sempre submetida à obediência à lei, de modo que o ser humano “livre” era obrigado a respeitar incondicionalmente as leis aprovadas pelo “corpo do povo”. As primeiras declarações de direitos, ao incorporarem a noção de liberdade como direito natural, quase sempre submetiam o exercício do direito ao respeito à lei. A técnica da reserva legal (“o direito X será exercido nos termos da lei”) tornou-se o padrão dessas primeiras declarações de direito. Desse modo, a liberdade não tinha a força de limitar verdadeiramente o legislador. Na verdade, o legislador era “livre” para limitar a liberdade como bem lhe aprouvesse. O velho princípio de que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei” é a consagração dessa ideia. No fundo, o que esse princípio estabelece é apenas um obstáculo formal à restrição da liberdade, exigindo que as obrigações involuntárias decorram de lei, mas sem impor nenhum empecilho forte ao legislador no que concerne ao conteúdo da legislação aprovada. Um dos poucos pensadores modernos a reconhecer que a tirania do legislador deveria ser combatida foi Locke. Porém, seu modelo tinha pouca valia prática, pois se baseava num direito de resistência do indivíduo oprimido contra a força do estado, sendo notório que a assimetria de poder torna inócua a resistência individual. Além disso, ao fim e ao cabo, quem tinha a última palavra para arbitrar os conflitos entre o indivíduo e o estado era o corpo do povo, guiado pela vontade da maioria, cujo potencial opressivo é tão grande quanto o do próprio estado. Vale lembrar que, em Locke, ao legislador é conferido o status de “poder supremo”.

Um passo influente para mudar o conceito moderno de liberdade foi dado por John Stuart Mill que, no seu On Liberty (1859), desenvolveu uma ideia de liberdade como princípio de legitimação estatal fundamentado para além da lei. Para Mill, a única justificativa capaz de legitimar a restrição da liberdade seria para evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros. Tem-se aí o chamado princípio do dano, que traduz um critério de intervenção estatal na liberdade relativamente simples, mas poderoso. Por essa fórmula, qualquer restrição da liberdade, inclusive através da lei, que não tenha por escopo evitar que os indivíduos causem danos uns aos outros seria ilegítima. O potencial revolucionário dessa ideia é notório. Basta imaginar, por exemplo, a regulamentação dos costumes presente no código penal, o tratamento jurídico da família constante no código civil, a proibição da eutanásia, da poligamia, da homossexualidade e assim por diante. Basicamente, uma conduta sem vítimas efetivas ou potenciais, isto é, que não interfira negativamente na esfera alheia, não poderia ser objeto de censura jurídica.

Embora o princípio do dano possa ser alvo fácil de diversas objeções (pense, por exemplo, na proibição de comércio de órgãos humanos ou na obrigação do uso de cinto de segurança), não há dúvida de que um grande passo foi dado para superar a velha noção de que o exercício da liberdade só é legítimo se for conforme à lei. Com Mill, é a própria lei que poderá deixar de ser legítima se não respeitar a liberdade.

A concepção de liberdade como limite ao legislador demorou bastante para ser incorporada ao pensamento jurídico. Na verdade, até hoje, ainda não se sabe com precisão até onde vai o poder de negar validade a uma lei que viole arbitrariamente a liberdade, até porque toda lei, em essência, restringe o exercício da liberdade. O certo é que o avanço do constitucionalismo, da jurisdição constitucional, dos direitos fundamentais criou um ambiente propício ao desenvolvimento dessa nova concepção de liberdade como limite ao legislador. Um dos marcos mais relevantes dessa concepção foi estabelecido no casoGriswold v. Connectutti, em 1965, pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Naquele julgamento, uma lei estadual que proibia a compra e venda de anticoncepcionais foi declarada inconstitucional por violar a autonomia privada, vale dizer, o direito dos casais de decidir sobre relações sexuais e reprodução. Depois disso, o mesmo princípio já foi invocado para anular leis que criminalizavam a sodomia, ou seja, a prática de relações sexuais entre adultos (caso Lawrence vs. Texas, de 2004), a proibição da eutanásia passiva (caso Cruzan v. Director, MDH, de 1990) e até mesmo a liberdade de escolha da mulher de interromper a gravidez nas primeiras semanas de gestação (caso Roe vs. Wade, de 1972). Em todos esses casos, o parâmetro de anulação da lei foi idêntico: a autonomia privada como limite ao legislador.

Falar em limite ao legislador é reconhecer um parâmetro de validade jurídica superior à lei. O poder político, nesse sentido, não teria legitimidade para interferir em uma determinada zona de privacidade pessoal, ainda não bem definida, mas claramente protegida contra os arroubos do legislador. Na sua influente teoria da justiça, John Rawls trouxe essa ideia para dentro do primeiro princípio de justiça, estabelecendo que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as outras. Assim, a restrição da liberdade somente seria justificada como forma de garantir o exercício simultâneo da liberdade pelos diversos membros da sociedade. Usando uma linguagem diferente, mas com propósitos semelhantes, Ronald Dworkin, no seu último livro “Justice for Hedgehogs”, defende a existência de um direito fundamental à independência ética, consistente em um direito da pessoa de tomar decisões refletidas, no autêntico exercício de sua autonomia. Assim, ninguém teria o direito de usurpar do sujeito ético a sua capacidade de ser o autor de própria história, dono do próprio destino, proprietário de si mesmo. Esse direito geraria para a pessoa um poder institucional de resistência, ou seja, um poder de questionar a validade jurídica da lei perante os órgãos responsáveis pelo controle de constitucionalidade.

Certamente, ainda falta muito para que alcancemos um nível de maturidade institucional em que a liberdade – como proteção da autêntica autonomia – seja reconhecida como um verdadeiro limite ao poder estatal. A possibilidade de discutir, perante órgãos do próprio estado, a validade jurídica de uma lei contaria à liberdade, embora constitua um avanço, certamente ainda é um mecanismo demasiadamente frágil de emancipação do sujeito ético contra o estado. De qualquer modo, é notória a evolução que tem ocorrido. Claramente mudamos o sentido da liberdade. Se, antes, a liberdade era conformada pela legalidade, hoje, pelo contrário, é a legalidade que está cada vez mais sendo conformada pela liberdade.

http://direitosfundamentais.net/2014/04/02/liberdade-contra-a-lei/

sexta-feira, 9 de maio de 2014

BRASIL PERDE A COPA DO PLANEJAMENTO E EXECUÇÃO


China, com as Olimpíadas de 2008, fortaleceu a imagem de país empreendedor, capaz de planejar e executar grandes projetos. O Brasil não fez o mesmo no futebol


EDITORIAL
O GLOBO:9/05/14 - 0h00



O atual momento, quase a um mês da Copa, serve para o resgate da surrada máxima de que “o futebol brasileiro só evoluiu da boca do túnel para dentro”. A imagem, criada para criticar a administração dos cartolas dos clubes e entidades, pode ser usada para ilustrar o saldo negativo no planejamento e execução do projeto do torneio, de que governos federal e estaduais são os responsáveis.

Não consolam fotos de jogos da Copa de 50 em que aparece um Maracanã ainda com enormes andaimes nas arquibancadas. As cenas podem não se repetir, mas o que foi prometido quando o país, em 2007,conquistou a escolha da sede da Copa de 2014, não será entregue. Este jogo está perdido.

O erro começou com a pressão brasileira para aumentar de oito para 12 o número de cidades-sede. Lula, ainda no Alvorada, deve ter arquitetado ampliar o palanque por onde desfilaria a sua sucessora, Dilma Rousseff, em campanha para a reeleição. Só a primeira parte do plano deu certo: ele elegeu Dilma. Mas usar jogos como palanque, os petistas são os primeiros a saber que seria uma insanidade, diante do mau humor que toma conta do país.

Não se antevê grandes problemas com estádios, embora tenham ocorrido atrasos de provocar ataques de nervos em Jérôme Valcke, o francês secretário-geral da Fifa. Uma das grandes falhas do projeto Copa é o pequeno legado, quando existe, para as populações das cidades-sede em termos de projetos de infraestrutura, principalmente para facilitar a locomoção das pessoas. No início, havia listadas 56 obras com este objetivo. Foram cortadas para 39, e talvez não cheguem a dez as que terão sido entregues até 12 de junho.

Outro gol contra foram os aeroportos. Por cegueira ideológica, o governo federal demorou muito a licitar terminais para serem administrados pela iniciativa privada, uma solução óbvia.

O Galeão, um dos símbolos da ineficiência histórica da estatal Infraero, só foi licitado no começo de abril. Melhorias efetivas, só para as Olimpíadas, daqui a dois anos. O problema nos aeroportos é menos de capacidade e mais de falta de conforto, em todos os sentidos, imposta aos viajantes. Outra derrota brasileira é nos custos. Dentro da tradição pátria, eles se multiplicam sem limites. Apenas no Itaquerão, de São Paulo, onde a Copa será aberta com o jogo do Brasil contra a Croácia, em 12 de junho, o orçamento de R$ 820 milhões já havia sido ultrapassado em R$ 300 milhões.

Seja ou não o Brasil hexa, tem-se de analisar as causas de todos os erros, e aprender com eles, talvez para evitar problemas nas Olimpíadas do Rio, daqui a dois anos. O legado das falhas tem função pedagógica a ser explorada. A China fez os Jogos Olímpicos de 2008 para fortalecer a imagem de um país empreendedor, capaz de planejar e executar grandes projetos. O Brasil perdeu uma oportunidade.


quarta-feira, 7 de maio de 2014

NUDEZ EM FESTAS E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS


















ZERO HORA 07 de maio de 2014


Todo direito
fundamental
é passível de
restrição



ÍSIS BOLL DE ARAUJO BASTOS
Advogada e professora universitária



A liberdade de expressão e a privacidade são direitos fundamentais assegurados na Constituição. Em primeira análise, pode-se afirmar que a nudez em festas particulares engloba esta perspectiva.

Destaca-se que todo direito fundamental é passível de restrição, pois não possui caráter absoluto.

No local privado, conta-se com maior autonomia para convencionar regras e a forma como a festa irá acontecer. Porém, tal fato não transforma a festa em um local de nudez sem aviso preliminar aos convidados, que têm a liberdade de escolha em participar ou não. A máxima “a liberdade de um termina onde começa a do outro” deve ser observada, pois estamos inseridos em um contexto social e cultural. As pessoas continuam com sua liberdade de expressão, que nesse caso sofre restrição em face do direito fundamental à intimidade, núcleo do direito fundamental à privacidade, que engloba o rol dos direitos da personalidade.

O direito fundamental à privacidade deve ser compreendido como faceta da dignidade da pessoa humana, sendo esta, na concepção de Sarlet, expressão da qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade.

Portanto, no confronto entre os direitos fundamentais privacidade e liberdade de expressão, somente a análise do caso concreto poderá averiguar qual irá prevalecer e qual o alcance da restrição.

Em caso de prevalência da privacidade e constatada ofensa a esta, é possível responsabilização civil, independentemente de eventual responsabilização penal.

No ambiente público, o mesmo raciocínio deve ser observado, de forma ainda mais criteriosa, pois se trata de um local público, quando o trânsito de pessoas é relativamente maior e o eventual dano aumenta na mesma proporção.

domingo, 4 de maio de 2014

COMO ROUBAR É REVOLUCIONÁRIO NA VENEZUELA


O GLOBO 04/05/2014

Eduardo Mayobre



Como a escassez e a necessidade distorcem valores no cotidiano da terra do ‘comandante eterno’

Contava a um amigo que há poucos dias me roubaram a bateria do carro estacionado num domingo numa rua de trânsito médio.

— É parte da revolução — disse-me ele.

Expliquei-lhe que estava numa reunião e que havia vários automóveis na área e movimento de pessoas que entravam e saíam. Discorri sobre as dificuldades para repor a bateria, produto em falta no mercado venezuelano e que é preciso visitar muitos fornecedores, que respondem sempre o mesmo: não tem.

— É parte da revolução — insistiu.

Ante minha perplexidade, expôs seu critério. “Como as baterias estão escassas, cria-se uma demanda reprimida. Uma necessidade, porque sem elas os carros não funcionam. Isto aumenta seu preço. E quem as procura pode levar vantagem. Logo, é preciso consegui-las do jeito que for. E, como não são encontradas no comércio, a única alternativa é roubá-las.”

Achei que sua explicação fazia sentido e expliquei-lhe que a forma como o roubo foi praticada fazia pensar no surgimento de uma técnica para fazê-lo rapidamente e obter o desejado butim. No meu caso, extraíram um pequeno vidro da janela traseira, sem danificá-lo, e levaram tranquilamente a bateria, quase nova. Mas perguntei-lhe qual era a relação entre a bateria e a revolução.

— Muito delicada — disse-me —. A revolução cria escassez. Por falta de produção, de divisas, o que seja. A escassez provoca necessidades. O revolucionário é satisfazer tais necessidades. E o fim justifica os meios. Em consequência, se tem necessidade de um bem escasso e não se consegue no mercado, é indispensável procurá-lo. Se, além disso, se puder obtê-lo com um bom lucro, não faltará alguém disposto a fazê-lo. Este alguém é quem te rouba.

— E o que a revolução tem a ver com tudo isto? — perguntei.

É fácil de explicar, respondeu-me. Quando se iniciou o chamado processo, seu líder, o comandante eterno, sentenciou que os que estão passando necessidade têm o direito de roubar. Seu argumento foi imediatamente entendido. E muitos começaram a roubar, não só para cobrir suas próprias necessidades, mas também a dos outros. Isto soava justiceiro, porque, como dizem os fascistas, a justiça primeiro. Mas, à medida que a escassez foi se impondo, a necessidade se estendeu dos indigentes até os de alto poder aquisitivo. Desde a mãe que não tem dinheiro para comprar leite para os filhos até a que, em sua mansão, não sabe como alimentá-los porque o leite sumiu. Se o argumento serve para uma, também pode ser usado pela outra. Pois a necessidade é a mesma. Assim se legitima o roubo.

— Mas isso quase ninguém levava a sério — objetei.

— Até que se faça um bom negócio — arguiu —, como quem comprará sua bateria. A partir de então, o roubo deixou de ser uma reivindicação, como proclamava o comandante, para passar a ser um bom negócio. Os vendedores ambulantes entenderam perfeitamente a lição. Mas também os larápios. E até as respeitáveis donas de casa.

— Como é isto? — perguntei.

Respondeu-me que era só ir ao supermercado para constatá-lo. Quando uma senhora que pôs em seu carrinho um bem escasso se descuida, outra dele se apropria sem o menor escrúpulo, pois considera que está satisfazendo uma necessidade dela ou de sua família. Ante a necessidade, tudo é permitido. Há outras que escondem dentro do estabelecimento os produtos racionados para voltar logo e poder passar duas ou três vezes pela caixa e bular o limite máximo permitido. Tenho visto fazê-lo senhoras de sobrenomes pomposos e também do povo.

— Sua conclusão é que se algo escasseia, como diria um filósofo, tudo é permitido.

— Não é minha — respondeu-me o amigo —, mas generalizada, à qual conferiu um fundamento teórico o comandante eterno, num dos seus múltiplos discursos em cadeia nacional.

— Foi por isso que me roubaram a bateria.

— Tudo é permitido.

— E como fica a vítima? Neste caso, eu.

— Ser vítima é o que lhe permite entrar no processo e justifica que você também acaricie a possibilidade de roubar do vizinho que tenha uma bateria ou de quem tenha vários pacotes de farinha em seu carrinho de supermercado.

— Mas não quero roubar nem quero que me roubem.

— Porque está do lado errado da história.

— E isto é a revolução?

— É o que terminou sendo. Sobretudo na etapa madura de sua história.




REBELDES DE FARDA

ZERO HORA 04/05/2014 | 07h03

Comissão resgata história de militares que se opuseram à ditadura. Dentro dos quartéis, nem todos abraçaram o movimento golpista de 1964, e quem resolveu resistir sofreu uma perseguição implacável

por Guilherme Mazui e Klécio Santos | Brasília



Jango (C) e Brizola (D) tinham aliados nos quartéis. A fidelidade aos trabalhistas acabou custando a vida de militaresFoto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal


No momento em que a ditadura se instalou no país, em 1964, a história colocou a democracia e os militares em lados opostos. Mas, nas trincheiras, também havia muitos de farda dispostos a resistir em defesa da restauração do governo de João Goulart.

É essa parte ainda turva da história que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) está disposta a reescrever, removendo a poeira dos arquivos e trazendo à tona fatos envolvendo aqueles que se opuseram ao golpe de dentro da caserna. Nas fileiras dos que tombaram com a implantação da ditadura militar, se conhece parte da biografia de, pelo menos, 27 militares. Já os sobreviventes, que foram perseguidos, torturados ou expurgados, são milhares. Boa parte da memória desse batalhão continua enterrada.

Com a investigação, a CNV imagina que os números, inclusive o de mortos, devem aumentar até a entrega do seu relatório final, em dezembro. Os dados revelam uma parte ínfima de um conjunto bem amplo de perseguidos nos quartéis, algo ainda pouco estudado. Os militares, universo que engloba as polícias estaduais, são a categoria proporcionalmente mais castigada pelo regime. Hoje, eles são invisíveis nas estatísticas, que reúnem dados da repressão, materializada em mortes, torturas, expulsões e aposentadorias forçadas.

— Trabalhamos com o número provisório de 7,5 mil atingidos em 1964, mas ainda temos os períodos pré e pós-golpe. São muitos os casos que não tiveram repercussão — aponta Paulo Cunha, um dos responsáveis pela pesquisa da CNV.

Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Cunha peregrina pelo país atrás de histórias de resistência na caserna. Além de informações sobre mortos, busca sobreviventes que preferiam silenciar após as agressões e ficaram à margem das estatísticas oficiais.

Uma amostra da dimensão da perseguição dentro das forças de segurança é a avalanche de pedidos de anistia que chegou ao Ministério da Justiça. Só militares ou familiares fizeram mais de 11 mil solicitações.

Nacionalistas x Americanófilos

Logo após a queda de Jango, aponta o jornalista Flávio Tavares, a perseguição dentro da caserna foi "implacável", sem poupar patentes, atingindo de taifeiros a oficiais. A maioria, com perfil nacionalista, pagou um preço alto por conta da ideologia. Era proibido discordar do governo ou apenas simpatizar com os dissidentes.

Tavares ressalta que o golpe foi dado por um setor das Forças Armadas, instituição que congregava opiniões distintas. A caserna era dividida entre nacionalistas, mais ligados à esquerda e contra o imperialismo, e "americanófilos", com discurso de caça aos comunistas alimentado pela Guerra Fria.

Na Aeronáutica, dois grupos importantes de nacionalistas estavam no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. As bases de Santa Cruz (RJ) e Canoas tentaram resistir ao golpe. Antes, em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, um motim de sargentos e suboficiais fez da base de Canoas o epicentro de uma crise que impediu o bombardeio do Palácio Piratini.

— Esses sargentos da Aeronáutica foram todos cassados. Foi feita uma limpeza nas Forças Armadas no começo do regime. Só restou quem concordava ou ficava quieto — recorda Tavares.

Um dos envolvidos em 1961 que tombou com o golpe foi o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto a tiros enquanto era destituído do comando da base de Canoas, em abril de 1964.

Na listagem de nomes cujas biografias são menos conhecidas, também consta o do catarinense Wânio José de Mattos, capitão da Polícia Militar de São Paulo, banido para o Chile em troca da liberdade do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Mattos, que era da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), padeceu nas mãos dos torturadores no Estádio Nacional do Chile, em 1973, no primeiro mês após a queda do presidente Salvador Allende.

A família só soube das circunstâncias da morte nos anos 1990, quando o Chile abriu arquivos da sua ditadura. O governo brasileiro já sabia do caso desde outubro de 1973, após a embaixada de Santiago enviar um telegrama confidencial ao Itamaraty para comunicar o "falecimento do extremista brasileiro".

— Muitos companheiros sofreram e foram esquecidos. Imagina a vida de um militar de esquerda no quartel. Você era odiado e humilhado por seus colegas — recorda Pedro Lobo, major reformado da PM de São Paulo, ex-militante da VPR, que serviu com Mattos.

Comissão Nacional da Verdade buscará dados no RS

O objetivo da ofensiva da Comissão Nacional da Verdade (CNV) em relação aos militares perseguidos pela ditadura é romper silêncios e esclarecer pontos ainda em aberto de algumas biografias. O consultor da CNV Paulo Cunha desembarca em Porto Alegre no segundo semestre para uma audiência pública.

O especialista procura também documentos e relatos sobre assassinados e torturados que não estejam entre os anistiados ou na lista de mortos e desaparecidos.

— No Sul, a repressão foi pesada nas Forças Armadas e na Brigada, que eram politizadas e tinham alas pró Leonel Brizola e Jango, inimigos do regime — afirma Cunha.

Entre os 27 mortos cujas histórias são o ponto de partida da CNV, estão cinco gaúchos. Além de Alfeu de Alcântara, integram a lista o major do Exército Joaquim Pires Cerveira, o sargento Edu Barreto Leite, o marinheiro Evaldo Luiz Ferreira de Souza e o capitão da BM Darcy dos Santos Mariante.

Filha do major Cerveira, a historiadora Neusah Cerveira aprova a busca por novas informações, mas não espera grandes novidades sobre o pai. Só gostaria que fosse possível terminar com o mistério do destino do corpo, ainda desconhecido, ou mesmo esclarecer quem foram os culpados pela morte do oficial.

— Não se trata de revanche, mas os responsáveis (pela morte) precisam ser punidos — diz Neusah.

Integrante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, a ativista Nadine Borges acredita que parte do esquecimento sobre a vida dos perseguidos deriva do medo das próprias vítimas e de seus familiares. Ainda em investigação, a recente morte do coronel reformado Paulo Malhães, torturador confesso, ajuda a intimidar.

— Reconhecer a perseguição é um ato de coragem, pois exige exposição e revive memórias dolorosas — afirma Nadine.

AS HISTÓRIAS DE ALGUNS DOS OPOSITORES

Alfeu de Alcântara
Força: Aeronáutica
Nascimento: 1922, Itaqui
Morte: 1964, Porto Alegre

Três dias após o golpe, Alfeu foi assassinado na base de Canoas. A tese era de que o tenente-coronel — promovido de forma póstuma a coronel — havia resistido a sua deposição no cargo de comandante da 5ª Zona Aérea. Alfeu foi atingido por tiros, e a necropsia atestou que foram disparados de uma posição fora do seu campo de visão. Ele estava marcado desde 1961, pela participação na resistência ao ataque que seria feito por caças ao Palácio Piratini, de onde Leonel Brizola comandava um levante para a garantir a posse de Jango. Alfeu foi substituído pelo brigadeiro Nelson Freire Lavenère-Wanderley, que prendeu todos os rebelados de 1961. O reconhecimento de que sua morte foi por motivos políticos só ocorreu em 2003.

Darcy dos Santos Mariante
Força: Brigada Militar
Nascimento: 1928, Caxias do Sul
Morte: 1966, Porto Alegre

Capitão, Mariante caiu com a pressão psicológica. Apoiava o PTB de Brizola e Jango, considerados inimigos do regime. Apesar de ter escapado de aposentadorias forçadas e exonerações, o capitão sucumbiu em razão das punições disciplinares, formas de repressão dentro da BM. Preso e torturado no 1º Batalhão de PM de Porto Alegre, em 1965, não resistiu às humilhações do cárcere. No ano seguinte, suicidou-se na frente da família com um tiro no peito. Advogado e coronel reformado da BM, Maildes Alves de Mello serviu com Mariante e relata a "devassa" feita na corporação depois do golpe, uma caça aos membros que pactuavam com o trabalhismo ou o comunismo. Segundo Maildes, Mariante servia no quartel-general da BM, local favorável ao novo regime.

Edu Barreto Leite
Força: Exército
Nascimento: 1940, Dom Pedrito
Morte: 1964, Rio de Janeiro

Apontado como subversivo, o terceiro-sargento trabalhava no serviço de rádio do Ministério da Guerra. Em abril de 1964, o militar despencou do sétimo andar do edifício onde morava, no Rio. Morreu no hospital com fraturas múltiplas. A versão oficial tratou o caso como suicídio. Leite teria pulado pela janela pouco antes de agentes invadirem seu apartamento, informação contestada pela família. À época, o zelador do prédio relatou que, na noite da queda, cinco homens esperavam pelo militar. Foi possível ouvir ruídos de luta corporal e de tiros vindos do apartamento, sendo que o zelador garantiu ter visto o morador ser arremessado. O inquérito militar não reconheceu o assassinato por questões políticas. O Estado só admitiu a responsabilidade pela morte em 2005.

Evaldo Ferreira de Souza
Força: Marinha
Nascimento: 1942, Pelotas
Morte: 1973, Olinda (PE)

Foi colega do cabo Anselmo nas revoltas na Marinha que precederam a derrubada de Jango. Ambos eram ativos na Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais. Evaldo foi exonerado em 1964 e ficou cinco anos em Cuba, onde recebeu treinamento de guerrilha. Recrutado por Anselmo para reerguer a VPR em Pernambuco, entrou na rota de morte da ditadura em 1973, no episódio conhecido como Massacre da Chácara São Bento, em que seis militantes foram assassinados, todos delatados por Anselmo. Evaldo estava na casa de Soledad Barrett Viedma, namorada do agente duplo mais famosos do regime, em Olinda, quando foi preso antes de ser torturado com os demais companheiros na chácara em Abreu e Lima (PE).

Joaquim Pires Cerveira
Força: Exército
Nascimento: 1923, Pelotas
Morte: 1974, Rio de Janeiro

Major da cavalaria, Cerveira ingressou jovem no PCB, após a derrubada do Estado Novo. Nos anos 1950, engajou-se nas mobilizações nacionalistas e na campanha presidencial do marechal Henrique Teixeira Lott. Durante o golpe, morava em Curitiba e era ligado ao PTB, legenda pela qual se elegeu vereador. Passou à reserva com o primeiro Ato Institucional. Liderou uma pequena organização clandestina, a Frente de Libertação Nacional (FLN), que se envolveu com a VPR de Lamarca no sequestro do embaixador alemão Von Holleben. Banido do país, foi sequestrado em 1973, em Buenos Aires, vítima de uma das primeiras ações conjuntas das ditaduras do Cone Sul. Preso pelo delegado Sérgio Fleury, foi trazido para o Brasil, e hoje é um dos desaparecidos políticos.