Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

segunda-feira, 31 de março de 2014

MEIO SÉCULO DEPOIS


O Estado de S.Paulo 31 de março de 2014 | 2h 04


OPINIÃO


Ao completarem-se 50 anos do movimento civil-militar de 31 de março de 1964, é possível ter uma visão mais serena e objetiva, tanto das condições que levaram a ele como dos primórdios do regime então implantado e o seu desvio do curso original imaginado, em especial, pelas lideranças civis. Facilitado pela perspectiva de meio século, esse esforço de compreensão dos fatos, assim como de seu dramático contexto histórico, é importante, sobretudo, para as novas gerações.

O governo do presidente João Goulart teve sua origem numa crise - a da renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961 - e em crise viveu até ser deposto. Goulart nunca se conformou com a solução de compromisso que, vencendo a resistência dos ministros militares, possibilitou sua posse - a instauração do parlamentarismo, no qual dividia seus poderes com o primeiro-ministro.

Ao mesmo tempo que se esforçava para conseguir a volta do presidencialismo, o que aconteceu com o plebiscito de janeiro de 1963, Goulart mobilizou sindicatos e lideranças radicais para impor as chamadas reformas de base "na lei ou na marra". Reformas de cunho socialista, embora ele não tivesse mandato popular para isso, pois foi eleito vice - e não em sua chapa, como então permitia a lei eleitoral - de um presidente nitidamente conservador. Nem para sua tentativa de dar papel preponderante aos sindicatos na condução do País, no que foi chamado de república sindicalista.

Assistiu-se então a uma mistura explosiva de avanço desses grupos para o controle do Estado e de desordem na economia e na administração. O líder comunista Luís Carlos Prestes chegou a dizer que os comunistas já estavam no governo, embora ainda não no poder. Leonel Brizola criou as unidades paramilitares "Grupos dos 11". A economia degringolava, com inflação alta e baixo crescimento.

O quadro se completa com a revolta dos sargentos, em setembro de 1963, e com a dos marinheiros, em 25 de março de 1964, que, atingindo em cheio a disciplina, espinha dorsal das Forças Armadas, colocou os militares em choque direto com o governo e precipitou sua intervenção. A reação de lideranças civis e da maioria da população ficou evidente na grande "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", que reuniu 500 mil pessoas em São Paulo, em 19 de março. Em 13 de março, no famoso Comício da Central, no Rio, em defesa das reformas de base, Goulart reunira bem menos apoiadores - 150 mil. Marchas semelhantes foram feitas em outras capitais. E sua deposição foi comemorada por 1 milhão de pessoas no Rio, no dia 2 de abril.

É importante assinalar que tudo isso se passou em meio à guerra fria. Para os Estados Unidos e seus aliados, era intolerável a possibilidade de o Brasil aderir ao campo comunista. Recorde-se que em outubro de 1962, por causa da recusa dos Estados Unidos de aceitar a presença em Cuba de mísseis ali colocados pela União Soviética, o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear. Este era um dado incontornável da realidade.

Com base no Ato Institucional baixado pelos militares, o governo do marechal Castelo Branco começou um bem-sucedido trabalho de saneamento das finanças e reorganização político-administrativa do País. Na economia e na modernização da administração, o regime obteve inegáveis êxitos. O mesmo não aconteceu na política.

O Ato Institucional n.º 2, o AI-2, de 27 de outubro de 1965, desviou o movimento de seu rumo. Mais grave do que extinguir os partidos foi, como assinalou o Estado em vários editoriais - notadamente os de 28 e 29 de outubro -, tornar permanentes medidas de emergência, excepcionais e transitórias, destinadas a recolocar o País no caminho democrático. O AI-2 marca o afastamento do Estado do movimento. A sua componente civil foi definhando e ele se tornou essencialmente militar. Começou ali o processo que levou ao autoritarismo e ao arbítrio do AI-5, à censura, à repressão, ao cerceamento das liberdades civis e dos direitos individuais.

A redemocratização viria ao fim de duas décadas de arbítrio, graças à persistência de milhares de brasileiros que se comportaram de forma pacífica e ordeira, repudiando tanto a violência empregada por aqueles que escolheram equivocadamente a luta armada quanto a brutalidade dos agentes do regime de exceção.

O PAPEL DOS MILITARES



ZERO HORA 31 de março de 2014 | N° 17749


EDITORIAIS



Setores das Forças Armadas demonstram desconforto com os registros na imprensa e nas mídias sociais dos 50 anos do golpe de 64. Com a esquerda no poder, incluindo-se aí pessoas que participaram diretamente da luta contra o autoritarismo, entre as quais a própria presidente da República, o clima predominante hoje é de condenação à ação militar que derrubou o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura de 21 anos no país. Mas é importante enfatizar que as reportagens jornalísticas responsáveis não estão omitindo em seus relatos o intenso apoio e a participação ativa de setores civis da sociedade no movimento golpista. Pelo contrário, ontem mesmo este jornal, por exemplo, publicou caderno de oito páginas focando exatamente o protagonismo de governadores, religiosos, empresários, estudantes, jornalistas, intelectuais e tradicionalistas na quebra da democracia.

Os militares alegam que foram chamados para impedir a implantação do comunismo no país e que, pelo menos num primeiro momento, cumpriram o dever constitucional de defender a população. Trata-se, evidentemente, de uma falácia. Numa democracia, não é preciso fazer uso da força para substituir governantes que desonram seus mandatos, como os próprios brasileiros demonstraram posteriormente em 1992, no movimento de impeachment que provocou a renúncia de Fernando Collor. Ninguém precisou pegar em armas nem foi preciso colocar tanques nas ruas para mudar o governo em pleno mandato.

Cabe reconhecer, porém, que é injusto atribuir às atuais Forças Armadas relação direta com os golpistas e os autoritários que se apropriaram do país por duas décadas – ainda que muitos de seus integrantes relutem em admitir o arbítrio dos comandantes da época. O importante é que os soldados voltaram para os quartéis. E que cumpram o papel que a Constituição lhes atribui, de defender a soberania do país e garantir a estabilidade das instituições, além de, subsidiariamente, contribuir na segurança pública e em operações humanitárias e de cooperação internacional.

Porém, o distanciamento histórico dos acontecimentos de 1964 e do próprio regime de exceção permite que a sociedade brasileira faça hoje uma avaliação mais serena da participação dos militares no golpe. Não se trata de revanchismo, mas, sim, de revisar o passado para que os erros cometidos não se repitam no presente e no futuro. Ainda que protegidos pela Lei da Anistia, os protagonistas daquele episódio, sejam eles civis ou militares, não podem se considerar isentos de críticas, pois o país recuperou suas liberdades exatamente para que o povo, a imprensa e qualquer indivíduo possam se manifestar sobre a realidade nacional.

domingo, 30 de março de 2014

1964


FOLHA.COM 30/03/2014 03h00

EDITORIAL


O regime militar (1964-1985) tem sido alvo de merecido e generalizado repúdio. A consolidação da democracia, nas últimas três décadas, torna ainda mais notória a violência que a ditadura representou.

Violência contra a população, privada do direito elementar ao autogoverno. E violência contra os opositores, perseguidos por mero delito de opinião, quando não presos ilegalmente e torturados, sobretudo no período de combate à guerrilha, entre 1969 e 1974.

Aquela foi uma era de feroz confronto entre dois modelos de sociedade –o socialismo revolucionário e a economia de mercado. Polarizadas, as forças engajadas em cada lado sabotavam as fórmulas intermediárias e a própria confiança na solução pacífica das divergências, essencial à democracia representativa.

A direita e parte dos liberais violaram a ordem constitucional em 1964 e impuseram um governo ilegítimo. Alegavam fazer uma contrarrevolução, destinada a impedir seus adversários de implantar ditadura ainda pior, mas com isso detiveram todo um impulso de mudança e participação social.

Parte da esquerda forçou os limites da legalidade na urgência de realizar, no começo dos anos 60, reformas que tinham muito de demagógico. Logo após 1964, quando a ditadura ainda se continha em certas balizas, grupos militarizados desencadearam uma luta armada dedicada a instalar, precisamente como eram acusados pelos adversários, uma ditadura comunista no país.

As responsabilidades pela espiral de violência se distribuem, assim, pelos dois extremos, mas não igualmente: a maior parcela de culpa cabe ao lado que impôs a lei do mais forte, e o pior crime foi cometido por aqueles que fizeram da tortura uma política clandestina de Estado.

Isso não significa que todas as críticas à ditadura tenham fundamento. Realizações de cunho econômico e estrutural desmentem a noção de um período de estagnação ou retrocesso.

Em 20 anos, a economia cresceu três vezes e meia. O produto nacional per capita mais que dobrou. A infraestrutura de transportes e comunicações se ampliou e se modernizou. A inflação, na maior parte do tempo, manteve-se baixa.

Todas as camadas sociais progrediram, embora de forma desigual, o que acentuou a iniquidade. Mesmo assim, um dado social revelador como a taxa de mortalidade infantil a cada 100 mil nascimentos, que era 116 em 1965, caiu a 63 em 1985 (e melhorou cada vez mais até chegar a 20 em 2013).

No atendimento às demandas de saúde e educação, contudo, a ditadura ficou aquém de seu desempenho econômico.

Sob um aspecto importante, 1964 não marca uma ruptura, mas o prosseguimento de um rumo anterior. Os governos militares consolidaram a política de substituição de importações, via proteção tarifária, que vinha sendo a principal alavanca da industrialização induzida pelo Estado e que permitiu, nos anos 70, instalar a indústria pesada no país.

A economia se diversificou e a sociedade não apenas se urbanizou (metade dos brasileiros vivia em cidades em 1964; duas décadas depois, eram mais de 70%) mas também se tornou mais dinâmica e complexa. Metrópoles cresceram de modo desordenado, ensejando problemas agudos de circulação e segurança.

O regime passou por fases diferentes, desde o surto repressivo do primeiro ano e o interregno moderado que precedeu a ditadura desabrida, brutal, da passagem da década, até uma demorada abertura política, iniciada dez anos antes de sua extinção formal, em 1985.

As crises do petróleo e da dívida externa desencadearam desarranjos na economia, logo traduzidos em perda de apoio, inclusive eleitoral. O regime se tornara estreito para uma sociedade que não cabia mais em seus limites. Dissolveu-se numa transição negociada da qual a anistia recíproca foi o alicerce.

Às vezes se cobra, desta Folha, ter apoiado a ditadura durante a primeira metade de sua vigência, tornando-se um dos veículos mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele apoio foi um erro.

Este jornal deveria ter rechaçado toda violência, de ambos os lados, mantendo-se um defensor intransigente da democracia e das liberdades individuais.

É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas circunstâncias.

Visto em perspectiva, o período foi um longo e doloroso aprendizado para todos os que atuam no espaço público, até atingirem a atual maturidade no respeito comum às regras e na renúncia à violência como forma de lutar por ideias. Que continue sendo assim

ESQUERDA TINHA DITADURAS COMO MODELO










O ESTADO DE S.PAULO 28 de março de 2014 | 17h 18


Marco Antonio Villa



Durante a ditadura, a oposição de esquerda transformou a experiência dos países socialistas em referência de democracia. A ditadura do proletariado foi exaltada como o ápice da liberdade humana e serviu como contraponto ao regime militar. A falácia tinha uma longa história. Desde os anos 1930 brasileiros escreveram libelos em defesa do sistema que libertava o homem da opressão capitalista.

Tudo começou com URSS, Um Novo Mundo, de Caio Prado Júnior, publicado em 1934, resultado de uma viagem de dois meses do autor pela União Soviética. Resolveu escrevê-lo, segundo informa na apresentação, devido ao sucesso das palestras que teria feito em São Paulo descrevendo a viagem. À época já se sabia do massacre de milhões de camponeses (a coletivização forçada do campo, 1929-1933) e a repressão a todas os não bolcheviques.

Prado Júnior justificou a violência, que segundo ele "está nas mãos das classes mais democráticas, a começar pelo proletariado, que delas precisam para destruir a sociedade burguesa e construir a sociedade socialista". A feroz ditadura foi assim retratada: "O regime soviético representa a mais perfeita comunhão de governados e governantes". O autor regressou à União Soviética 27 anos depois. Publicou seu relato com o título O Mundo do Socialismo. Logo de início escreveu que estava "convencido dessa transformação (socialista), e que a humanidade toda marcha para ela".

Em 1960, Caio Prado não poderia ignorar a repressão soviética. A invasão da Hungria e os campos de concentração stalinistas estavam na memória. Mas o historiador exaltava "o que ocorre no terreno da liberdade de expressão do pensamento, oral e escrito", acrescentando: "Nada há nos países capitalistas que mesmo de longe se compare com o que a respeito ocorre na União Soviética". E continua escamoteando a ditadura: "Os aparelhos especiais de repressão interna desapareceram por completo. Tem-se neles a mais total liberdade de movimentos, e não há sinais de restrições além das ordinárias e normais que se encontram em qualquer outro lugar."

Seguindo pelo mesmo caminho está Jorge Amado, Prêmio Stalin da Paz de 1951. Isso mesmo: o tirano que ordenou o massacre de milhões de soviéticos dava seu nome a um prêmio "da paz". Antes de visitar a União Soviética e publicar um livro relatando as maravilhas do socialismo - o que ocorreu em 1951 -, Amado escreveu uma laudatória biografia de Luís Carlos Prestes. A União Soviética foi retratada da seguinte forma: "Pátria dos trabalhadores do mundo, pátria da ciência, da arte, da cultura, da beleza e da liberdade. Pátria da justiça humana, sonho dos poetas que os operários e os camponeses fizeram realidade magnífica".

A partir dos anos 1970, o foco foi saindo da União Soviética e se dirigindo a outros países socialistas. Em parte devido aos diversos rachas na esquerda brasileira. Cada agrupamento foi escolhendo a sua "referência", o país-modelo. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) optou pela Albânia. O país mais atrasado da Europa virou a meca dos antigos maoistas, como pode ser visto no livro O Socialismo na Albânia, de Jaime Sautchuk. O jornalista visitou o país e não viu nenhuma repressão. Apresentou um retrato róseo. Ao visitar um apartamento escolhido pelo governo, notou que não havia gás de cozinha. O fogão funcionava graças à lenha ou ao carvão. Isso foi registrado como algo absolutamente natural.

O culto da personalidade de Enver Hoxha, o tirano albanês, segundo Sautchuk, não era incentivado pelo governo. Era de forma natural que a divinização do líder começava nos jardins de infância onde era chamado de "titio Enver". As condenações à morte de dirigentes que se opuseram ao ditador foram justificadas por razões de Estado. Assim como a censura à imprensa.

Com o desgaste dos modelos soviético, chinês e albanês, Cuba passou a ocupar o lugar. Teve papel central neste processo o livro A Ilha, do jornalista Fernando Morais, que visitou o país em 1977. Quando perguntado sobre os presos políticos, o ditador Fidel Castro respondeu que "deve haver uns 2 mil ou 3 mil". Tudo isso foi dito naturalmente - e aceito pelo entrevistador.

Um dos piores momentos do livro é quando Morais perguntou para um jornalista se em Cuba existia liberdade de imprensa. A resposta foi uma gargalhada: "Claro que não. Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês". Outro jornalista completou: "Liberdade de imprensa para atacar um governo voltado para o proletariado? Isso nós não temos. E nos orgulhamos muito de não ter". O silêncio de Morais, para o leitor, é sinal de concordância. O pior é que vivíamos sob o tacão da censura.

O mais estranho é que essa literatura era consumida como um instrumento de combate do regime militar. Causa perplexidade como os valores democráticos resistiram aos golpes do poder (a direita) e de seus opositores (a esquerda).


HISTORIADOR, É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'DITADURA À BRASILEIRA. 1964-1985. A DEMOCRACIA GOLPEADA À ESQUERDA E À DIREITA' (LEYA).

ELOGIO DA DEMOCRACIA

O GLOBO 30/03/2014

Rosiska Darcy de Oliveira

O regime de 64 não só foi corrupto como sequestrou, com o terror instalado nas escolas, a formação de crianças e jovens



Há meio século uma geração ganhou de presente de 20 anos uma ditadura que a marcaria pela vida inteira com a memória da prisão, da tortura e do exílio. Aos mortos, só agora uma comissão presta a homenagem póstuma da verdade.

O golpe de 64, a pretexto de combater a corrupção e a ameaça comunista que supostamente pairava sobre o país, acabou com a democracia. O regime que se instalou não só foi corrupto como sequestrou com o terror instalado nas escolas a formação de crianças e jovens. Tentou inutilmente calar os artistas.

Liberdade, “essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, é como o ar, cujo valor só se percebe quando se é sufocado. Descobrimos o valor da democracia quando ela foi abolida. Os anos de chumbo produziram um clamor nacional pelo restabelecimento do regime democrático e já lá vão 30 anos das jornadas em verde e amarelo das Diretas Já. De lá para cá, três perseguidos pela ditadura chegaram à Presidência. A estabilização da moeda, as políticas de inclusão social e a irrestrita liberdade de opinião mudaram o país para melhor.

Mas a democracia exige uma reinvenção permanente. Neste momento inspira cuidados. As ameaças que pesam sobre nós são a generalização da corrupção e a banalização da violência, que têm uma raiz comum: o abismo entre o apodrecimento do sistema político e as expectativas cada vez maiores e mais definidas da sociedade.

A noção clássica de democracia pressupõe eleições, pluralidade de partidos, alternância no governo, equilíbrio entre poderes. Nada disso nos falta. O paradoxo é a coexistência de eleições majoritárias legítimas com um sistema político desmoralizado e uma sociedade dinâmica que faz ouvir sua voz.

O ideal da democracia representativa não se encarna nos desmandos de parlamentares, o que a coloca em risco, vítima não de ideias revolucionárias que envelheceram já no século passado, e sim de surtos de violência que, a múltiplos pretextos, se alastram. A esfera política, que mediava e representava os interesses conflitantes da população junto ao Estado, se desfez no ácido de seu próprio cinismo. O escárnio face à população desqualificou-a como interlocutora. Se não, como explicar a violência que frequentemente explode e incendeia uma rua qualquer do Brasil?

A banalização da violência eclode desvinculada dos grandes números que não acusam uma crise social aguda. Há baixo desemprego, indicadores de aumento de renda e de bem-estar material nas camadas mais pobres, redução constante, ainda que lenta, das desigualdades de todo tipo, sociais, raciais, de gênero, regionais. Há liberdade de imprensa e de opinião.

A crise social não está nos grandes números, está no sentimento das pessoas. A democracia que se quer não se esgota em eleições. Uma parte significativa da população defende valores — repudia a corrupção, que associa justamente a tudo o que lhe falta, quer ser respeitada e ter a liberdade de escolher sua vida e vivê-la em paz — e não encontra onde ancorar essas aspirações. Há um voto órfão que ninguém sabe, nas próximas eleições, para onde irá. Se for.

A fé cega e exclusiva na economia serve de antolhos à direita e à esquerda. O sobe e desce dos indicadores econômicos ignora que as sociedades têm uma dimensão moral, definem o que é justo ou injusto. Se assim não fosse, não se explicaria por que, há 50 anos, uma parte da juventude que vivia confortavelmente e tinha diante de si um futuro garantido, tenha arriscado a vida e o futuro no sonho de um país mais justo.

Esse artigo é dedicado às sucessivas gerações que lutaram contra a ditadura e aos jovens herdeiros dessa estirpe. Os que hoje não aceitam a corrupção e a desigualdade como uma peça do cenário nada esperam de partidos terminais e, rejeitando a violência destruidora, com imaginação criadora tecem a democracia com o fio espesso das microações que humanizam as pessoas, as cidades e o país.

A pluralidade está inscrita na democracia. Que as formas de exercê-la possam ser elas mesmas plurais ainda é pouco percebido. A democracia se faz com atores múltiplos que balizam seus passos pela ética, que vivem a liberdade e a defendem para todos, que exigem direitos que se traduzem em qualidade de vida. Esses, como células-tronco, têm o poder de reavivar tecidos mortos. O fundamento da democracia contemporânea não é o Estado, é o cidadão.

Uma democracia vivida no dia a dia é a melhor garantia de que nunca mais virá nos assombrar o pesadelo histórico que foi o golpe de 64.


MEIO SÉCULO DEPOIS, RELEMBRAR É PRECISO


ZERO HORA 30 de março de 2014 | N° 17748


PÁGINA 10 | ROSANE DE OLIVEIRA


Não é incomum se ouvir de quem não sofreu os horrores da ditadura que naquele tempo era melhor. Que não havia corrupção nem insegurança ou que o país crescia como um Tigre Asiático. Esquecem os saudosistas que também não havia imprensa livre para denunciar as atrocidades do regime e que um jovem inocente podia ser torturado e morto se fosse confundido com um terrorista. Nos 50 anos do golpe, é preciso mostrar aos jovens o que foram os 21 anos de regime militar e reafirmar uma obviedade com frequência ignorada: não existe ditadura boa. Nem de direita, nem de esquerda.

Há uma novidade neste aniversário em comparação com os 10, 20, 30 ou 40 anos do golpe: graças ao trabalho da Comissão da Verdade, aos depoimentos das vítimas e às confissões dos torturadores, sabe-se mais sobre o que se passou nos porões do regime. Revelações sobre o que aconteceu com desaparecidos notáveis, como o ex-deputado Rubens Paiva, ajudam os jovens nascidos depois da redemocratização a entender a lógica dos militares nos Anos de Chumbo: na guerra contra o fantasma do comunismo, valia torturar, matar e sumir com o corpo. Na ótica dos líderes de esquerda, na luta contra os militares valia matar, sequestrar e assaltar bancos para financiar a guerrilha.

Diferentemente do que aconteceu na Argentina, no Brasil as descobertas da Comissão da Verdade servirão apenas para que se conheça a História. Nenhum torturador será punido, ninguém será condenado pela morte ou pelo desaparecimento de presos. Em agosto, a Lei da Anistia completa 35 anos.

Apesar das vozes isoladas que pregam a volta da ditadura, não há clima para retrocesso. O fracasso das tentativas de reeditar as “marchas da família”, que antecederam o golpe de 1964, atesta que a democracia está sólida. Nos quartéis, os militares mostram-se dispostos a respeitar a Constituição. Para completar, o mundo mudou com o fim da Guerra Fria. O comunismo, que em 1964 era temido pelos civis avalistas do golpe, desandou com o esfacelamento da União Soviética e hoje é ridicularizado na figura do ditador da Coreia do Norte ou cultuado por uma parcela que ainda considera Cuba seu ideal de sociedade. Há problemas, mas o país respira liberdade, as eleições entraram na rotina e as instituições estão sólidas.


Números da repressão

- 366 mortos ou desaparecidos
- 4.862 mandatos eletivos cassados
- 500 mil cidadãos investigados
- 200 mil detidos por subversão
- 10 mil torturados nos DOI-Codi
- 10 mil brasileiros exilados
- 3 vezes o Congresso foi fechado
- 1.202 sindicatos sob intervenção
- 128 brasileiros banidos

Fonte: Movimento de Justiça e Direitos Humanos

Aliás

Quase 30 anos depois da volta da democracia, as escolas de Ensino Fundamental e Médio tratam o golpe de 1964 e seus efeitos de forma superficial.



MARCADO PARA SEMPRE



A equipe do cineasta Paulo Nascimento, responsável pelo filme Em Teu Nome, que conta a história do ex-integrante da luta armada na ditadura João Carlos Bona Garcia (foto), chegou à Base Aérea de Canoas otimista, durante a pré-produção do longa. O objetivo parecia simples: fazer imagens do local, onde, em janeiro de 1971, o ex-guerrilheiro, preso e torturado pelos militares, foi trocado pelo embaixador da Suíça Giovanni Enrico Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária. Quando os oficiais que atenderam o grupo souberam que a gravação era para o filme sobre Bona, negaram:

– Aquele terrorista? Ele tinha de estar morto – disse um deles.

Para Bona, hoje com 67 anos, o episódio mostra um dos piores legados deixados pela ditadura à sociedade brasileira: a resistência dos militares em assumirem os erros cometidos no período.

– Os militares que atenderam o Paulo Nascimento eram jovens, não eram do Exército durante o regime. Como que eles poderiam dizer isso de mim, sem nem me conhecer?! Por que eles (militares) não assumem o que fizeram? Em outros países, como no Chile e na Argentina, as forças armadas reconheceram. Custa dizer? Não! – indigna-se.

Bona diz que as escolas militares suprimem dos ensinamentos as partes negativas do regime, o que faz com que os jovens estudantes e futuros soldados e oficiais não renovem o discurso encampado pela ditadura.

Após sofrer nas mãos dos torturadores e ser banido do país, Bona retornou ao Brasil em 1979 e mergulhou na política – concorreu a prefeito em Passo Fundo pelo PMDB e foi chefe da Casa Civil durante o governo Antonio Britto. Hoje, vive em um confortável apartamento no bairro Rio Branco, na Capital. Bem diferente dos locais onde se abrigou durante o exílio.

– Tive de começar do zero várias vezes, com um colchão e um fogareiro – lembra.

O ex-guerrilheiro também passou por uma experiência peculiar para alguém que lutou contra a ditadura ao ser nomeado, em 1998, juiz do Tribunal de Justiça Militar. A posse foi contestada pelos militares na Justiça, mas acabou mantida. Anos depois, Bona chegou à presidência da Corte.

– Foi uma experiência espetacular. Uma vez, em um evento, os militares viraram as costas para mim. Tentei sempre fazer o trabalho mais isento possível – conta.

O cinquentenário do golpe é a oportunidade, na opinião de Bona, de trazer à tona a memória da ditadura e valorizar a liberdade:

– Nosso país não cultiva a memória. Temos muito o que melhorar, mas as pessoas têm de entender que agora elas têm liberdade para pedir. Temos de valorizar isso.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Faltou enumerar os policiais e militares mortos e torturados durante a repressão.

PARA NÃO ESQUECER


ZERO HORA 30 de março de 2014 | N° 17748


EDITORIAL INTERATIVO



Meio século depois, a história do golpe de 1964 está sendo revisada e recontada sob o olhar plural da democracia e o questionamento implacável das redes sociais. O fato histórico merece esta atenção e esta visibilidade, não apenas porque marcou a vida de várias gerações de brasileiros, mas também e principalmente porque a lembrança do perío-do autoritário reforça o nosso apreço pela liberdade. Aquela abrupta mudança de rumo político levou o país a mergulhar nas trevas do autoritarismo, mas também o desafiou a encontrar saídas democráticas para o labirinto da ditadura que sucedeu à ruptura institucional.

A deposição do presidente João Goulart, comandada pelos militares com o apoio de parcela expressiva da população, de organizações religiosas e empresariais, da mídia e de outros setores representativos da sociedade brasileira, foi sucedida por um período de inegável desenvolvimento econômico, no início, mas também de supressão de direitos individuais, de perseguição política, de repressão brutal e de censura impiedosa. O regime ditatorial deixou feridas que jamais cicatrizarão e lições que não podem ser esquecidas, entre as quais a de que ninguém, sob pretexto algum, tem o direito de se apropriar do Estado. O ensinamento vale também para a parcela de opositores da ditadura que enveredou pelo lado da violência, sem demonstrar comprometimento com a democracia.

O Brasil não pertence às Forças Armadas, aos partidos políticos ou a eventuais ocupantes do poder. É uma propriedade coletiva, de todos os brasileiros. E nosso povo optou, inequivocamente, pela democracia, pela liberdade de expressão e de manifestação, pelo direito de escolher livremente seus representantes políticos, pelo desenvolvimento sem milagres, fundamentado no trabalho e na paz social.

Na condição de herdeiros das lutas democráticas empreendidas pelos que resistiram ao golpe num primeiro momento e pelos que passaram para a oposição posteriormente, os governantes e as lideranças políticas de hoje não podem ser coniventes com as sabotagens à democracia, com a corrupção em todos os níveis da sociedade, com a impunidade, com a apropriação do Estado por corporações, partidos e ideologias, e muito menos com as tentativas de inibir a livre expressão do pensamento, que só contribuem para degradar a condição humana e social dos brasileiros.

Não queremos mais tutores, fardados ou em trajes civis. Queremos, isto sim, governantes responsáveis, comprometidos com a ética administrativa e com o bem-estar da população, submissos à Constituição e à vontade popular, transparentes nos seus atos e tolerantes com os questionamentos às suas administrações. Todas as formas de arbítrio e de totalitarismo merecem ser repudiadas, independentemente de sua coloração no espectro político.

O golpe de 64 e os 21 anos de exceção deixaram sequelas, ressentimentos e também o ensinamento inesquecível de que a liberdade continua sendo o patrimônio mais valioso desta nação.

O LEGADO PERVERSO


ZERO HORA 30 de março de 2014 | N° 17748

ARTIGOS

 Flávio Tavares*




O golpe de Estado nos acompanha até hoje como ferida e como espanto. Senti seus passos já antes daquele 1º de abril de 1964, na conspiração que se fazia à luz do dia. Eu era o colunista político, em Brasília, da Última Hora, o único grande jornal que não pedia a derrubada do presidente da República. O Congresso ainda tinha prestígio e poder e lá convivi com golpistas e antigolpistas. Também as Forças Armadas tinham prestígio, num tempo em que se debatiam as reformas de base que, a partir da reforma agrária, construiriam o futuro. Ou que nos levariam ao inferno, a ser uma nova China comunista, como o embaixador dos Estados Unidos sussurrava a políticos e militares.

Desde a posse de João Goulart, em 1961, a extrema direita pregava o golpe. Assim, quando o general Mourão Filho rebelou-se em Minas a 31 de março, ninguém se espantou: antes, os mecanismos da democracia tinham dominado meia dúzia de sedições. Estarreci-me, porém, com o ardil em que o senador Moura Andrade transformou o Congresso em cúmplice de tudo. Na madrugada de 2 de abril, numa sessão de três minutos (sem debate ou votação), o presidente do Congresso declarou “vaga” a presidência da República, após ler o ofício em que João Goulart comunicava que viajava a Porto Alegre, com os ministros, para instalar o governo. Encerrou a sessão, desligou os microfones e, entre gritos de protestos e de vitória, saiu para dar posse ao novo “presidente provisório” no Palácio do Planalto.

A cilada fora perfeita, mas fora uma cilada, como lembro no meu novo livro 1964 – O Golpe. A missão do Congresso era dar guarida à Constituição, não ao golpe. Mesmo sem ainda conhecer o horror a vir depois, aquilo era uma bofetada à minha geração, formada na crença da liberdade e do pluralismo.

Logo, a Junta Militar impôs o Ato Institucional e “legalizou” a ditadura, com cassações de mandatos, suspensões de direitos políticos, prisões em massa e expulsões das Forças Armadas, pela primeira vez na História. E aí, o golpe muda nossas vidas. Ao punir, o novo poder oficializou a violência e o medo, destruiu os valores morais da convivência cotidiana. Brotaram aduladores, alcaguetes e delatores descobrindo “comunistas subversivos” em todos os lados.

Ninguém ousava falar em ditadura e meu espanto cresceu. Tudo se vigiava e reprimia. A violência substituía a solidariedade. Aqui, na UFRGS, o filósofo e pensador católico Ernâni Maria Fiori encabeçou a lista dos “comunistas expulsos”. A Universidade de Brasília, inovadora na ciência e nas artes, foi invadida – a biblioteca destruída, alunos e professores presos ou expulsos. O absurdo e a intolerância usaram práticas medievais de perseguição. A fúria varreu até o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio, dedicado à pesquisa médica, demitindo “cientistas comunistas”.

A quartelada de 1º de abril adotou o nome de “Revolução” e a imprensa cúmplice a chamou assim. Surgiu a grande simulação: uma ditadura com parlamento, que discutia o corriqueiro, nunca temas de fundo. Agora, ao ter em mãos os documentos sobre a participação política e militar dos EUA no golpe de 1964, entendi a mútua sedução de cinismo político entre os quartéis e o Congresso. Um precisava do outro para sobreviver, sem que a opinião pública norte-americana percebesse que seu governo apoiara e financiara a instituição de uma ditadura. A simulação inundou o país. A propaganda oficial escondeu os porões em que a tortura se tornou “método de interrogatório” e ia até ao assassinato.

O medo fez o Brasil se calar. A adulação instalou-se como norma de conduta social. Mais do que a repressão e a tortura, o legado perverso do golpe de 1964 foi ter mudado o comportamento social, fazendo do oportunismo um estilo de vida.

Por acaso, não é o que perdura até hoje na política?

*JORNALISTA E ESCRITOR

sábado, 29 de março de 2014

ELA ESTAVA PEDINDO

28/03/2014 22h31




Para 65%, a vítima é culpada pelo estupro se usar short, decote ou saia curta

RUTH DE AQUINO


Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. É uma afirmação forte. Leia novamente, por outro ângulo. Homens que atacam mulheres com shorts, saias curtas ou decotes reveladores não têm culpa nenhuma. Eles não são agressores, apenas respondem a seu instinto humano e animal.

O homem, ao atacar, exerce o direito masculino de se apossar daqueles nacos de carne exibidos. Coxas, umbigo, linha dos seios, costas. Se ela mostrou na rua, em público, estava pedindo, não é mesmo? Nesse caso, se existe algum culpado de ataque sexual, claro, é ela. A fêmea que provoca o desejo do macho.

Se você acha que enlouqueci, saiba que faz parte de uma minoria no Brasil. Também sou minoria. Mesmo ciente do preconceito e do machismo entranhados em nossa sociedade, fiquei escandalizada com o resultado de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada entre maio e junho do ano passado, com 3.810 pessoas em todo o país.

Segundo o levantamento, 65% dos entrevistados concordam parcial (22,4%) ou totalmente (42,7%) com a afirmação “mulher que mostra o corpo merece ser atacada”. Não é só homem que acha isso. Muita mulher moralista, hipócrita e ciumenta acha o mesmo. Que queimem no inferno as mulheres fáceis e libertinas...ou apenas sensuais, bonitas e desejáveis que economizam no tecido.

Quinhentas e vinte e sete mil mulheres, adolescentes e crianças são estupradas por ano no Brasil. Isso significa que, a cada dia, ocorrem 1.443 estupros de seres do sexo feminino. São 60 estupros por hora. Um estupro por minuto. Não sei quanto tempo você leva para ler esta coluna. Marque no relógio e, no ponto final, saberá quantas mulheres, adolescentes e crianças terão sido atacadas sexualmente enquanto você pensa se faz parte dos 65% de brasileiros que culpam a vítima.

“Mulher ainda é vista como propriedade no país. Homem pode fazer o que quiser do corpo feminino.” Essa é a visão da socióloga Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Está no senso comum que a mulher provoca e, por isso, é estuprada, que ela apanha porque o marido estava nervoso, que ela deve tolerar as agressões para manter o núcleo familiar”, disse Samira ao jornal O Globo.

A pesquisa do Ipea revela um poço de preconceitos. Dá arrepio na alma. Mas prefiro me concentrar na parte mais atroz e cruel: a inversão da culpa nos ataques sexuais. Que explica também por que 58% dos entrevistados acham que, “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. Eles culpam Eva e seus atributos físicos.

As famílias ajudam a perpetuar o preconceito. Pais e mães que se orgulham do filho “garanhão” e “comedor” e castigam a filha “namoradeira” e sexualmente livre contribuem para visões distorcidas dos gêneros. Ambas as atitudes – o orgulho e a rejeição – são equivocadas.

Escrevi uma coluna, “Os pegadores e as vagabundas”, que descreve exatamente essa dupla moral. O número alto ou baixo de parceiros sexuais não determina o caráter ou o real prazer de ninguém. A rotatividade na cama não deveria ser tachada de devassidão. Não sempre. A busca talvez? Mas o homem pode buscar, e a mulher não... ainda hoje, no ano 2014, ela é malvista.

Em cidades litorâneas e quentes onde se anda semidespido, como o Rio de Janeiro, fica claro, nos calçadões, o código do figurino diferenciado. Homens de todas as idades e corpos caminham de sunga, mas praticamente só as gringas caminham de biquíni, sem nada por cima. As cariocas têm receio de ser atacadas verbalmente ou fisicamente se andarem na calçada de biquíni.

Em São Paulo, passar a mão dentro do metrô e dos trens virou esporte de macho mal resolvido, que quer extravasar as frustrações. Homens foram presos em flagrante, sob acusação de abuso de passageiras jovens e bonitas. Alguns desses abusadores se gabam na internet de usar o transporte público para molestar as mulheres. Há os que se masturbam, que se encostam, que filmam as moças. Uma passageira disse ao Fantástico que anda no metrô com uma chave de fenda, por defesa pessoal. Outra pediu que a sociedade pare de julgar as mulheres pelas roupas. Mas esse dia parece estar longe. Sempre esteve.

Quando eu, garota de praia, estava perto de completar 11 anos, meu pai me proibiu de usar biquíni, porque tinha ficado “mocinha” – eufemismo para a primeira menstruação. Nem “duas peças” podia. Precisava ser maiô inteiro. Era uma ordem. Me senti confusa e humilhada, não protegida. Meu pai também destruiu uma minissaia a tesouradas, para eu não mostrar as coxas. Dizia que era para meu bem. Foi mesmo, porque ali, naquele apartamento de Copacabana, comecei a me rebelar.

A INTERNET AGORA TEM LEI

REVISTA ISTO É N° Edição: 2314 | 28.Mar.14

Depois de quase três anos no Congresso, Câmara aprova o Marco Civil, uma espécie de constituição da rede mundial de computadores no Brasil



Depois de quase três anos tramitando no Congresso Nacional, o Marco Civil da Internet, uma espécie de “constituição” da rede que define direitos e deveres, tanto de usuários quanto de provedores, finalmente foi aprovado na Câmara dos Deputados. O texto, que sofreu uma série de pressões das empresas de telecomunicações para ser alterado, saiu muito próximo do que o governo pretendia, principalmente no que se refere ao que ficou conhecido como a neutralidade da rede. De acordo com a redação final do Marco Civil, as empresas agora não poderão decidir que tipo de serviço ou conteúdo irá circular com maior ou menor velocidade na rede (leia quadro ao lado).

Apesar da aprovação na Câmara, o marco civil da internet ainda não está em vigor. Para que a lei passe a valer o texto precisa ser aprovado no Senado e, depois, ser sancionado pela presidenta da República, Dilma Rousseff. Após a queda de braço na Câmara – e a série de concessões que o Planalto fez para convencer o PMDB a aceitar a redação final –, dificilmente haverá sobressaltos no Senado.

Apesar de o resultado em torno da nova lei não ter sido unânime, o Marco Civil da Internet preenche uma lacuna importante na legislação brasileira. Várias questões envolvendo a regulamentação do uso e da comercialização de acesso à internet não tinham regras claras. A expectativa é de que ao menos a maior parte da nova lei já esteja em vigor até o início do próximo semestre





"A INTERNET GANHA SUA CARTA MAGNA"


Carlos José Marques, diretor editorial



Foram mais de dois anos de negociações, discussões sobre princípios e estudos legais, mas finalmente o que já vem sendo chamado de Carta Magna da internet brasileira começa a sair do papel para tomar sentido prático. A Câmara dos Deputados, após idas e vindas protelando o assunto por interesses políticos diversos e lobbies comerciais de toda ordem, votou e aprovou por aclamação na semana passada o texto do Marco Civil. Ele disciplina o funcionamento da rede em variados aspectos: do policiamento sobre conteúdos impróprios aos direitos e deveres de usuários, provedores, empresas de telecomunicação e todo o vasto universo de tráfego nesse ambiente. É um avanço e tanto! Mais um passo civilizatório para um país que em poucos anos mergulhou de cabeça na era digital, converteu-se em um dos maiores mercados de internautas e, inexplicavelmente, estava até agora sem um arcabouço regulatório que orientasse a atividade. O projeto ainda segue para avaliação e sanção no Senado antes de entrar em vigor. Mas o simples fato de parlamentares chegarem a um entendimento em torno de uma proposta comum significou grande progresso. O relator da “Constituição da Internet”, o deputado petista Alessandro Molon, diz que o feito consolida uma posição de destaque do Brasil nesse campo. E, de fato, não é menos que isso. Países como os EUA, por exemplo, ainda patinam no campo das regras de uso da rede e não raramente cometem, de forma deliberada, atentados como o da recente invasão de e-mails de chefes de Estado. O Brasil, por sua vez, terá através do Marco Civil mecanismos eficazes para coibir abusos e vai, principalmente, conseguir estabelecer o tão esperado princípio da neutralidade na rede. Esse é o princípio que proíbe provedores de mudar a velocidade de conexão ou cobrar preços distintos de acordo com o conteúdo acessado. A igualdade está preservada. Bem como aspectos como liberdade de expressão, privacidade, guarda de dados e comercialização, que também foram contemplados dentro dos critérios mais modernos possíveis. O usuário, grande beneficiário da nova lei, terá mais força e voz no sistema e encontrará, daqui por diante, canais legais eficazes para buscar seus direitos. A lei, inegavelmente necessária, veio para ficar e seus efeitos benéficos serão rapidamente sentidos por todos.

UM PAÍS MACHISTA

REVISTA ISTO É N° Edição: 2314 | 28.Mar.14


Pesquisa do Ipea revela como os brasileiros têm uma visão preconceituosa, recusam a igualdade de gêneros e até justificam a violência sexual

Camila Brandalise (camila@istoe.com.br)



Quando a pílula anticoncepcional foi lançada, em 1960, a mulher se viu livre para separar a reprodução do desejo sexual. Quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, ela viu seus direitos serem aumentados para protegê-la da violência. Estamos em 2014, e não há remédio nem lei para dar fim a valores morais tão opressores quanto os mostrados pela pesquisa “Tolerância Social à Violência contra as Mulheres”, divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na quinta-feira 27. Os números denunciam uma sociedade que ainda submete o sexo feminino a um papel menor e limitado. Segundo o estudo, 65% dos entrevistados concordam que a mulher que usa roupas que mostram o corpo merece ser atacada – como se fosse uma punição por não seguir um padrão. Além disso, 58% acreditam que, se elas soubessem se comportar, haveria menos estupros. São dados que mostram que, apesar de todas as conquistas dos últimos anos, o sexo feminino ainda é oprimido por um modelo de comportamento. Essa mentalidade medieval é o maior entrave para o enfrentamento da violência sexual e, pior, dá margem para que crimes continuem a ser cometidos – vide a onda de ataques de encoxadores nos metrôs brasileiros nas últimas semanas.


Os números do estudo servem para mostrar que, se por um lado as
mulheres deram passos importantes em favor dos seus direitos,
por outro ainda há muito para ser conquistado

Vale apontar que o machismo gritante mostrado na pesquisa não é uma característica majoritariamente masculina. Para o levantamento, foram ouvidas 3.810 pessoas em todas as partes do Brasil. Entre elas, 66,5% eram mulheres, muitas delas mães que estão educando seus filhos, reproduzindo o discurso que denigre sua própria condição. “No fundo, muitas assumem essa ideologia machista de que precisamos estar presas, contidas. É uma mentalidade de colonizado”, afirma a advogada Leila Linhares Barsted, coordenadora executiva da ONG feminista Cepia. Para Leila, os resultados evidenciam outros dois grandes problemas. Primeiro em relação ao preconceito. “A mulher não é livre, não pode vestir o que quer e nem ir aonde quiser. Precisa estar em casa, ao lado de um marido ou de um pai”, diz. “Caso contrário, é julgada, ou pior, atacada.” Segundo, porque é um sinal de que também a conduta masculina é estigmatizada. Como se os homens, por natureza, não conseguissem se controlar.

Diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Rafael Osório, um dos realizadores da pesquisa, afirma que, dos dados positivos, destaca-se o fato de 90% das pessoas acreditarem que o homem deve ser preso quando bate na mulher. Porém, mesmo nesse caso, há uma distinção entre a que segue e a que não segue o padrão. “Aquela que não merece violência física é a mãe, a irmã. A que está sujeita à proteção dos homens da casa.” Um pensamento equivocado que dá a entender que, dentro do seu lar, o perigo não existe. “Mas precisamos lembrar que há uma grande parte de vítimas estupradas por seus familiares”, diz Leila. Se por um lado a maioria concorda com a prisão do homem em casos de agressão, uma mesma maioria acredita que a violência em casa deve ser resolvida com os membros da família. “Mas no âmbito privado há sempre uma pressão para que a família seja mantida, mesmo que para isso a esposa tenha de suprimir seu direito individual”, afirma Leila.



Os vários números que evidenciam o problema do preconceito servem para mostrar que, se por um lado as mulheres deram passos importantes em favor dos seus direitos, por outro ainda há muito para ser conquistado. “Ainda somos barradas na representação política, somos vistas por uma parcela da sociedade como cidadãs de segunda classe, merecedoras de punições”, diz Leila. “Precisamos avançar no campo dos valores, que não só são arcaicos, mas assumiram uma conotação de chancelar a violência contra a mulher.” Reduzir os números, portanto, vai depender diretamente de quanto diminuirá a ignorância da sociedade.

Foto: Blend Images/Getty Images

OS GENERAIS ERAM LEÕES, HOJE SÃO RATOS

REVISTA ISTO É N° Edição: 2314 | 28.Mar.14

Em sítio na Baixada Fluminense, no Rio, coronel Paulo Malhães, que admitiu ter torturado, matado e ocultado cadáveres durante a ditadura militar, mantém perfil violento e diz que era apaixonado pelo seu trabalho

Wilson Aquino (waquino@istoe.com.br)


O coronel da reserva Paulo Malhães, 75 anos, o homem que deixou o País estarrecido com os depoimentos dados à Comissão da Verdade, por ser o primeiro militar de alta patente a admitir ter torturado, matado e ocultado cadáveres de presos políticos durante a ditadura militar (1964-1985), hoje mistura arroubos de violência e, ao mesmo tempo, um comportamento de aposentado tradicional. Sentado na varanda de sua casa, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, Malhães disse à ISTOÉ que atira sem dó em quem tentar usar drogas perto da residência. “Se vier vender ou fumar maconha na minha cerca, eu sento o dedo (atiro) mesmo. Sempre foi assim”, disse. O portão a que ele se refere é o muro que cerca os 19 mil metros quadrados de área, onde ele vive com a quinta esposa, Cristina, de 36 anos. Em contraste com o seu perfil, o ex-torturador é capaz de falar, quase candidamente, nos cuidados que dedica a seu orquidário com 200 espécimes, e a seus três cães, tratados com um carinho que não combina em nada com o passado do militar. A casa é simples, antiga, com paredes descascadas e infiltrações. Malhães diz que seu “soldo é pequeno” e não permite uma reforma. No embalo das críticas, xinga os rumos que o País tomou na democracia. “Eu nunca podia pensar que o próprio Exército ia entregar o comando do País de volta (aos civis). Podia entregar para um sucessor tranquilo, como o (Paulo) Maluf, que era o nosso candidato. Mas quando entregaram à oposição (Tancredo Neves) e desfizeram o sistema de informações, me senti mais ou menos traído”, disse em entrevista exclusiva à ISTOÉ.


A FACE DA REPRESSÃO
Paulo Malhães, na varanda de sua casa, revelou que
não gostava de interrogar homossexuais e mulheres.
"Porque eles não entregam o macho deles. Ao contrário do homem."

Na avaliação do coronel, os generais que se faziam de “brabos” nos anos de chumbo se revelaram uns “frouxos”, depois. “Antigamente, os generais eram leões, de tão machos e tão violentos...Hoje os vejo como ratos no buraco.” Já ele, segundo sua própria definição, continua leão. Sob anonimato, pessoas da vizinhança afirmam que Malhães chegou a liderar um grupo de extermínio na região. “O coronel andava a cavalo pelas ruas, patrulhando. Quando os viciados o avistavam, fugiam tremendo, porque ele matava mesmo” contou um velho conhecido. Hoje, as limitações físicas já não permitem performances como essas. Malhães usa um andador para se locomover devido a dores fortes no nervo ciático.

Na conversa com a reportagem de ISTOÉ, Malhães se atribui enorme importância ao se dizer em condições de afirmar até que os presidentes militares sabiam o que acontecia nos porões da ditadura. “O Médici (general Emílio Garrastazu Médici - 1905-1985) era um dos que sabiam de tudo. Quando ele tinha dúvida, me chamava e perguntava. E eu contava”, afirmou. De repente, ao começar a discorrer sobre os crimes do passado, o coronel elabora uma reflexão em voz alta: “Por que matar e não entregar o corpo? Porque o fato de o cara desaparecer é mais incisivo do que mostrar o cadáver. Morreu , acabou, esquece. Mas quando some, fica aquela situação: cadê o fulano? Até hoje tem essa repercussão. Não vão achar nunca, mas fica essa esperança”, exemplificou, se negando a citar nomes.

A abrupta reflexão de Malhães, em meio às revelações sobre o passado, talvez se justifique pelo que ocorreu durante a última semana envolvendo o seu nome. Na quarta-feira 26, Malhães apresentou versões contraditórias sobre depoimento prestado à Comissão Nacional da Verdade (CNV), recentemente. Primeiro, disse que tinha desenterrado os ossos do deputado Rubens Paiva, morto em 1971. Depois, afirmou que não faz a menor ideia de quem eram os restos mortais que encontrou.


"Se aparecer um maconheiro em frente à minha casa, eu atiro"

Especificamente sobre as torturas, de maneira geral, o coronel teceu sua gélida lógica: “A tortura não existe para o soldado. Se você me combater fardado, tem direito às leis da Convenção de Genebra, não posso te torturar. Mas se você combate misturado na população, não tem esse direito.” Segundo Malhães, os militares somente venceram o que chamou de guerra porque cooptaram muitos presos políticos, aos quais se refere como “infiltrados”. “O sujeito era preso e eu analisava o caráter e as fraquezas dele. Então, cantava ele para trabalhar para a gente. Isso tinha que ser feito em um espaço de tempo muito pequeno para o pessoal de fora não sentir falta dele. Aí, devolvia para a rua.Se ele cumprisse o primeiro contato comigo, que a gente chamava de ‘ponto’, a parada estava ganha. Graças aos infiltrados conseguimos destruir todas as organizações”, gabou-se à ISTOÉ. Dentro do mesmo contexto, ele revelou ainda que não gostava de interrogar homossexuais e mulheres. “Porque eles não entregam o macho deles. Ao contrário, homem, no primeiro tapa já dedura a companheira.” À atividade no Exército, apesar de, na época, incluir tortura e morte, o coronel conferiu um tom romântico: “Isso é um trabalho pelo qual você se apaixona.”

Numa espécie de desabafo, Malhães revelou os motivos que o levaram a contar parte do que sabe sobre os crimes cometidos por militares na ditadura. “Como se passaram 50 anos achei que estava na hora de o Brasil conhecer uma história que esteve escondida por tanto tempo”. Questionado se não temia ser punido, o coronel demonstrou tranquilidade. “Estou velho demais para ir para a cadeia. Não vai acontecer nada comigo porque sou considerado incapaz”, explica. Ao avaliar a Comissão da Verdade, Malhães debocha. “Chamo de ‘Comissão da Meia Verdade’ porque tratam somente da metade dos envolvidos. Sobre os sequestros e assassinatos dos subversivos a Comissão não quer saber. Só quer saber do que nós (militares) fizemos”.

Fotos: Rudy Trindade

OS 20 ANOS QUE MUDARAM O BRASIL

REVISTA ISTO É N° Edição: 2314 | 28.Mar.14

As radicalizações das forças políticas de direita e esquerda, a atuação dos conspiradores civis e militares e os equívocos políticos do governo João Goulart contribuíram para que, entre os dias 13 de março e 1º de abril de 1964, o golpe fosse consumado

Sérgio Pardellas


Foi a partir de uma data associada ao mau agouro que a situação política do então presidente da República João Goulart se deterioraria e as forças golpistas civis e militares encontrariam solo fértil para, dali a 20 dias, articular e sacramentar sua deposição, que condenou o País a 20 anos de trevas. Eram 19h45 de uma sexta-feira 13 quando o nada supersticioso Jango, suando frio, ainda meio baqueado por uma queda de pressão horas antes, subiu ao palanque erguido na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Enquanto aguardava o momento do seu pronunciamento, Jango fixou os olhos na multidão – cerca de 200 mil pessoas. A imensa maioria exibia cartazes com dizeres a seu favor. Em meio a um ambiente de radicalização à direita e à esquerda, greves e inflação em alta, o evento estava sendo observado com atenção não só pela população, mas por segmentos expressivos da sociedade civil, agentes políticos de todas as colorações partidárias e, principalmente, militares governistas e oposicionistas. Afinal, o comício poderia marcar a definitiva aliança com as esquerdas de um presidente até então hesitante a fazê-lo por medo de perder o apoio dos moderados, encarnados pelo PSD de Tancredo Neves. A expectativa se confirmou.


FIM DE LINHA
Sem oferecer resistência ao golpe, Jango,
já deposto, experimentaria sua pior solidão

Ao tomar a palavra, às 20h46, sob forte calor e tensão emocional, ao lado da mulher, Maria Thereza, Jango, de improviso, proferiu um de seus mais duros discursos desde a posse. Enquanto o ministro da Casa Civil Darcy Ribeiro soprava palavras incendiárias em seu ouvido, aproveitando as pausas no discurso, Goulart selava sua união com as esquerdas ao defender as reformas de base, entre elas a agrária, confirmar o rompimento com o PSD e pregar a necessidade de reescrever a Constituição, à qual se referiu como antiquada. O pronunciamento magnetizou a plateia e inflamou representantes do PTB, PCB e CGT, mas também atiçou a caserna e setores conservadores. A imprensa alinhou-se nas críticas ao comício e, daquela sexta-feira até 1º de abril, o conflito político entre os grupos antagônicos da época assumiu proporções preocupantes para a continuidade do processo democrático.

O discurso de Jango se materializaria, dois dias depois, em uma mensagem enviada ao Congresso. Além das reformas de base, Goulart propunha uma reforma eleitoral que criava o instituto da reeleição para presidente e abria brechas legais para a candidatura ao pleito de 1965 do cunhado Leonel Brizola, uma das principais lideranças do PTB. Até então, o petebista não poderia se lançar candidato porque a Constituição dizia que eram inelegíveis parentes de até segundo grau de ocupantes do Executivo.

O ambiente não poderia ser mais propício para a movimentação dos militares golpistas. Para as esquerdas, as iniciativas do presidente foram encaradas como uma vitória. Para a direita e conspiradores, “já não se tratava de resistir, mas de intervir no processo para liquidar uma situação tida como intolerável”, sublinhou o jornalista Carlos Castello Branco, que assinava uma das colunas mais respeitadas da época, Coisas da Política, no “Jornal do Brasil”. Até Juscelino Kubitschek, do PSD, que não costurava e nem sequer pensava em golpe de Estado, pois era um dos candidatos favoritos à eleição de 1965, comentou com um interlocutor: “Jango passou dos limites. Saiu da legalidade que o sustentava”, anunciou. O governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, da UDN, e o de São Paulo, Adhemar de Barros, passaram a ocupar rádios e televisões para atacar Goulart. Carlos Lacerda, ferrenho opositor, governador da Guanabara, ampliou o tom dos ataques. Em meio ao clima de tensão política e desconfiança geral, nem as esquerdas pareciam pacificadas, mesmo após todos os movimentos do presidente em direção aos seus anseios. Houve, na esquerda, quem considerasse que um eventual golpe em marcha, de inspiração direitista ou não, pudesse contar com a participação do próprio presidente.

A Marcha da Família disseminou o medo da esquerda

No dia 18 de março, o ex-presidente da República Eurico Gaspar Dutra concedia uma entrevista ao “JB” em que, além de atacar pessoalmente Goulart, pregava “a união em defesa da legalidade enquanto é tempo”. A entrevista, de grande repercussão, embalou manifestações populares a favor da destituição de Jango. Numa espécie de revide ao Comício da Central, no dia 19 de março surgiu o movimento intitulado Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Ostentando cartazes com os dizeres “Comuna não tem vez” e “Aqui não, João”, a marcha reuniu 500 mil pessoas, entre lideranças conservadoras, católicas e setores da classe média, na praça da república, em São Paulo. O evento que tomou as ruas da cidade representou o grande ato de resistência a Jango. Naquela altura, entre os círculos conspiratórios, Castelo Branco começava a se sobressair como liderança anti-Goulart. O sentimento de medo de um governo de esquerda que, para os opositores a Jango, “ameaçava a Constituição e a família brasileira”, fora disseminado e ganhou ainda mais fôlego. Restava a gota d’água. E ela teria proporções de um oceano para Goulart: a rebelião dos marinheiros.

Em 23 de março, marinheiros e fuzileiros organizavam o aniversário da associação que os representava. A festa ocorreria na sede da Petrobras e serviria para os subalternos da Marinha criticarem as condições de trabalho. O ministro da Marinha, Sílvio Mota, interveio na tentativa de proibir não só a utilização da Petrobras como local da festa, mas também a comemoração em si. No dia 24 de março, véspera do aniversário da associação não reconhecida pela Marinha, Mota mandou prender 12 de seus dirigentes. Entre eles, seu presidente, o cabo José Anselmo. Quando a crise eclodiu, em 25 de março, Jango estava com a família em São Borja. Durante o evento, realizado na sede do Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, cerca de dois mil marinheiros ouviram um discurso desafiador do cabo Anselmo. Em tom político, ele defendeu as reformas de base e atacou seus superiores.


CONSPIRAÇÃO MILITAR
Após a ida de Jango ao Automóvel Clube, o general
Castelo Branco intensificou tratativas para o golpe

A festa se desenrolava quando Mota mandou prender outros 40 marinheiros, mas foi desautorizado por Jango. Horas depois, o ministro da Marinha renunciou ao cargo. No dia 27 de março, Jango, mesmo pressionado pelas Forças Armadas, decidiu anistiar os rebeldes. Sentindo-se feridas no que mais de essencial existia nelas, os fundamentos da autoridade, hierarquia, disciplina e respeito às leis militares, as Forças Armadas estavam à beira de um rompimento definitivo com Jango. Em conversa com o ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, JK dizia que na noite de 29 para 30 de março o País vivia “a maior crise político-militar de sua história”. Os jornais afirmavam que “o estado de direito submergia no Brasil”.

O momento exigia de Jango prudência política, mas ocorreu o inverso. No dia 30 de março, o presidente resolveu comparecer à sede do Automóvel Clube, onde aconteceria a posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar. Para assessores próximos a Goulart, a ida ao evento era uma insensatez. Tancredo Neves aconselhou-o pessoalmente a não ir, mas o presidente fez ouvidos moucos e desembarcou no Automóvel Clube perto das 20h, acompanhado da mulher e de alguns ministros. Em discurso, além de acusar “inimigos da democracia” de conspirar contra o seu governo, Jango usou termos contrários à disciplina militar que azedaram de vez sua relação já esgarçada com as Forças Armadas. Até os oficiais legalistas e nacionalistas já temiam pelo pior. “Acabou-se. Não há mais sustentação. Eles vão dar o golpe”, disse o tenente-coronel Alfredo Arraes de Alencar. A partir dali, organizações de esquerda passaram a se preparar de fato para um possível golpe. “Agora, quanto pior, melhor”, dizia o general Ernesto Geisel.

Rebelião dos marinheiros e discurso
em clube militar foram a gota d’água


No dia 31 de março, o movimento golpista já estava em marcha e ganhava dinâmica própria. Em editorial intitulado “Basta!”, o prestigiado jornal “Correio da Manhã” passou a cobrar a deposição de Jango. O presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, foi um dos primeiros políticos a romper publicamente com Jango, ao denunciar a “infiltração comunista no País” e afirmar a necessidade da “intervenção militar para garantir a ordem”. Em seguida, o governador de Minas, Magalhães Pinto, apresentou-se como líder civil do movimento para depor Goulart. Horas depois o presidente teve a confirmação do golpe em curso. De Juiz de Fora (MG), o general Olímpio Mourão Filho liderava um comboio militar, formado por recrutas, que marchava para a Guanabara. Em uma derradeira conversa com Jango, no Palácio Laranjeiras, JK sugeriu ao chefe do Executivo medidas conservadoras para estancar a crise. Fez coro o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Peri Bevilaqua. O general garantiu apoio militar, desde que declarasse oposição às greves patrocinadas pela CGT e se comprometesse com a manutenção da disciplina e da hierarquia militar. Goulart se recusou a tais exigências. Naquele momento, o presidente ainda acreditava num dispositivo militar a seu favor. Pensava também contar com o apoio do general do II Exército, Amaury Kruel, que ainda não havia se posicionado em meio ao turbilhão da crise. Quando tropas, tanques e carros blindados do Exército estacionaram no Ibirapuera (SP), Kruel tomou sua decisão em favor dos golpistas. Em pronunciamento às rádios, depois de o governador Adhemar de Barros declarar apoio aos mineiros, Kruel disse que a Pátria deveria ser salva do “jugo vermelho”. Foi uma derrota para Goulart. Do QG do Exército, Geisel e Golbery do Couto e Silva aglutinavam os focos de rebelião militar por telefone. Na noite de 31 de março, Kruel ordenou o deslocamento das tropas do II Exército em direção à Guanabara. Ou seja, para lá marchavam as colunas militares de Minas e de São Paulo, ambas para derrubar o governo. No Nordeste, o comandante do IV Exército também acompanhou os golpistas e ordenou a prisão do governador Miguel Arraes. Ao amanhecer do dia 1º de abril, o governo de Jango estava sitiado. Às duas da madrugada do dia seguinte, quando o presidente já se encontrava em sua estância em Porto Alegre, o presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância do cargo de presidente. O golpe estava consumado.








A herança de chumbo. 
O almanaque do Golpe de 1964

Antonio Carlos Prado, Elaine Ortiz, Ana Weiss
























As caras da crise

Quem são os protagonistas da radicalização que levou ao golpe


Ao se jogar as luzes sobre o golpe militar de 1964, tende-se a enxergar apenas as fardas e os coturnos. O fatídico golpe de 1º de abril, no entanto, teve a contribuição também de civis de diferentes espectros da esquerda e da direita. Os personagens que ilustram estas páginas, como Leonel Brizola, Carlos Lacerda, Miguel Arraes e Olímpio Mourão, ajudaram, seja com conspirações ou falas inflamadas, a sacudir a ordem institucional do País usando diferentes discursos. Tinham, porém, o mesmo desejo: implementar um projeto, cada um a seu modo, de poder no Brasil. Não à toa, às vésperas da deposição de João Goulart, já era dado como certo que aconteceria um golpe. Restava apenas saber se ele viria de um lado ou do outro. O que não se esperava, mesmo entre aqueles que se sagraram vitoriosos em um primeiro momento, é que a democracia seria interrompida por mais de duas décadas.





Fotos: Arquivo/Agência O Globo, Estadão Conteúdo; Acervo UH/Folhapress; Divulgação/Warner Bros, Imagem extraída do livro “Operação Araguaia”; Anibal Philot/Agência O Globo, Arquivo/Agência O Globo; Agência Istoé


TODOS QUERIAM UM GOLPE

REVISTA ISTO É N° Edição: 2314 | 28.Mar.14


Não foram só os militares que desprezaram as regras democráticas em 1964. Havia conspiradores na direita, na esquerda e nas entranhas do próprio governo João Goulart

Amauri Segalla e Pedro Marcondes de Moura


Em 1964, o Brasil era um País enredado numa teia de conspirações. Tramava-se contra o governo de João Goulart, mas o próprio Jango quis corromper as regras da sucessão presidencial. Enquanto a direita urdia a tomada de poder, líderes da esquerda defendiam o fechamento do Congresso Nacional. Se os empresários lançaram uma campanha que incendiou militares, os estudantes da UNE cantaram uma música com o refrão “Não dá pra ter democracia se a barriga está vazia”. Ao mesmo tempo em que Gilberto Freyre celebrou o golpe, Darcy Ribeiro defendeu a resistência até a morte. O Brasil de 1964 era um balaio de ideias e correntes políticas, de líderes pertinazes e sabotadores empedernidos, e por isso mesmo a sociedade ansiava por mudanças, ainda que elas significassem o desapego à democracia. Alguma coisa precisava acontecer, e aconteceu da pior maneira possível. No livro “A Ditadura Envergonhada”, do jornalista Elio Gaspari, consta o que Miguel Arraes, o governador esquerdista de Pernambuco, disse a amigos às vésperas do histórico 1º de abril: “Estou certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei.”


NUVENS SOBRE BRASíLIA
Conspiradores de todas as correntes ideológicas lutavam por ruptura institucional

O golpe veio de lá, mas poderia ter vindo de qualquer lugar. Seu primeiro capítulo se deu na renúncia de Jânio Quadros, em 1961, que desencadeou uma sequência de acontecimentos que acabaram por fragmentar o País. Na ausência de Jânio, a chefia da nação deveria ser transmitida a João Goulart, mas seu nome foi vetado por ministros militares – e assim ele sofreria seu primeiro golpe antes mesmo de assumir o cargo. Inventou-se uma fórmula parlamentarista delirante, segundo a qual Jango ocuparia a Presidência, mas sem desfrutar de fato do poder. O parlamentarismo caiu um ano e meio depois, em um plebiscito que daria a Jango 9,5 milhões de votos. Mas, enfim presidente, o homem que já causava arrepios nos conservadores aproximou-se ainda mais das esquerdas. Em outubro de 1963, pediu ao Congresso a decretação do estado de sítio e, pouco depois, quis alterar a Constituição, o que abriria a possibilidade de ser reeleito no pleito de 1965, suspenso pela ditadura. Seu cunhado, o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, assumiria então o papel de incendiador oficial da República. No Comício da Central, no dia 13 de março, Brizola propôs o fechamento do Congresso. A Jango, disse não uma, mas várias vezes: “Se não dermos o golpe, eles o darão contra nós”. A ideia golpista estava no ar.

Em janeiro, em uma entrevista na tevê, Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista, fez uma declaração que assustou almas mais suscetíveis: “Poderíamos concordar com a dissolução do Congresso se houvesse um governo que desse as necessárias garantias democráticas a todas as forças patrióticas”. Não eram, a seu modo, conspiradores de plantão?

A guinada de Jango e a proximidade com líderes comunistas exasperaram os sentimentos mais sombrios da direita nacional. Ávidos por derrubar o presidente, alguns dos principais empresários do País criaram o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, o Ipês, constituído com o propósito de lançar campanhas difamatórias contra movimentos de esquerda. O Ipês fez propagandas de alcance nacional que apresentavam comunistas como indivíduos sanguinários, e seus quadros contavam com figuras que mais tarde se tornariam símbolos da ditadura, como o general Golbery do Couto e Silva. Num período em que a circulação de informações não se dava de maneira irrestrita como agora, o Ipês produziu um longo documentário sobre a economia do País. A obra carregou na dramaticidade. A situação era feia – inflação perto de 100% ao ano, diminuição da renda per capita, gastos públicos excessivos –, mas o Ipês pintou um cenário de tragédia que levou pânico principalmente à classe média.



No âmbito político, havia golpistas entre os governadores dos principais Estados brasileiros. Em São Paulo, Adhemar de Barros organizou, com a ajuda de lideranças católicas, a Marcha da Família, evento que contou com a presença de centenas de milhares de pessoas contrárias à “onda comunista” – era o apoio popular que os militares precisavam para levar o golpe adiante. Em Minas Gerais, o governador e banqueiro José de Magalhães Pinto fez tudo que pôde para defenestrar Jango. No dia 28 de março, Magalhães reuniu-se com o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar e primeiro militar a pôr suas tropas na rua. A pauta do encontro: as ações que seriam lançadas para tomar a Presidência. Carlos Lacerda, o “derrubador de presidentes”

e governador do então Estado da Guanabara, orgulhava-se de ter instigado o governo americano ao dar uma entrevista bombástica para o jornal “Los Angeles Times”, denunciando o que chamou de infiltração comunista no governo Jango. Não estavam todos conspirando contra o presidente?

Na lógica dos governadores, a queda de Jango resultaria num governo militar transitório até as eleições presidenciais, em 1966, quando disputariam votos na condição de favoritos. Brizola raciocinou da mesma forma. Havia até um slogan para a campanha dele: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”.


Em 64, o Brasil ansiava por mudanças, mesmo se elas ameaçassem a democracia

O golpe veio e a ironia é que muitos de seus protagonistas – de um lado ou de outro da trincheira – acabaram banidos pelos militares. Adhemar fugiu e morreu na França. Lacerda foi preso. Prestes entrou na clandestinidade e depois viveu anos na antiga União Soviética. Brizola exilou-se no Uruguai. Consta que, ao cruzar a fronteira, carregava a faixa presidencial roubada de Jango.

Montagem sobre foto de Dmitri Kessel/Time Life Pictures/Getty Images, fotos: Arquivo em/D.A Press; Uh/Folhapress


Conspiração americana


Os Estados Unidos agiram ativamente para derrubar João Goulart da Presidência e cogitaram até mesmo invadir o país caso o golpe fracassasse

Yan Boechat (yan@istoe.com.br)


A noite já havia caído sobre a Guanabara naquela sexta-feira de outono que marcava o fim de uma semana especialmente tensa no país quando o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, iniciou a transmissão de um longo telegrama ao Departamento de Estado Americano. Classificado como “Top Secret”, o documento era dividido em cinco partes e tinha como destinatários figuras do primeiro escalão do governo dos Estados Unidos, como o secretário de Defesa, Robert McNamara, e o secretário de Estado, Dean Rusk. Gordon ainda estava sob o impacto do incendiário discurso do então presidente João Goulart realizado duas semanas antes na Central do Brasil, no Rio, e impressionado com o imenso apoio popular à Marcha da Família com Deus. Ele acreditava na ameaça concreta de uma guerra civil no Brasil. Para ele, Jango estava determinado a dar um golpe e assumir poderes ditatoriais com o apoio de comunistas dispostos a transformar o País em uma espécie de China maoista da América do Sul. “Se eles tiverem sucesso”, escreve Gordon a seus superiores, “é bastante provável que o Brasil fique sob total controle comunista”.


REGISTRO
O presidente John Kennedy e o embaixador americano no Brasil,
Lincoln Gordon, no Salão Oval da Casa Branca

O documento enviado no dia 27 de março de 1964 tinha intenções mais complexas do que o simples relato do estado das coisas no maior país da América Latina. Com a descrição alarmista, Lincoln Gordon pedia, também, autorização para colocar em prática um plano arriscado, porém ambicioso, conhecido como Brother Sam, que tinha como objetivo depor João Goulart da Presidência e entregar o poder a militares fiéis à ideologia americana de luta contra o comunismo. No telegrama enviado da embaixada americana no Rio, Gordon é explícito: “Recomendo que todas as medidas para preparar o envio clandestino de armas de origem não americana aos apoiadores de Castelo Branco em São Paulo sejam feitas o mais rápido possível (...) A entrega deve ocorrer à noite por submarino em uma área isolada ao sul de Santos, provavelmente próximo a Iguape ou ‘Gananeia’ (sic)”.

O pedido para envio de armas para apoiadores do general Castelo Branco era apenas uma, talvez a mais simples e a menor, de uma série de ações que os Estados Unidos pretendiam tomar caso o golpe de 1º de abril não saísse como se esperava. A operação de apoio aos militares golpistas brasileiros começou a ser desenhada dois anos antes com o apoio do presidente americano John F. Kennedy. Em gravações feitas no Salão Oval da Casa Branca em 1962 e 1963, Kennedy fala abertamente com Gordon sobre um golpe no Brasil (leia diálogos na página anterior). No último registro de conversa entre os dois, um mês e meio antes de o presidente americano ser assassinado no Texas, Kennedy pergunta a Gordon: “Você vê a situação caminhando para um ponto em que seria desejável interferir militarmente nós mesmos?”



A morte do mais carismático líder americano do pós-guerra não afetou os planos de intervenção no Brasil. Sob o comando de Lyndon Johnson, Gordon continuou com carta branca para conspirar contra o presidente brasileiro. Ele já vinha fazendo isso desde 1961, quando assumiu a embaixada americana no Brasil. Para apoiá-lo na missão, o Departamento de Estado enviou o coronel Vernon Walters, ainda em 1963, para ser o adido militar americano no Brasil. Walters, um poliglota que falava sete idiomas, havia sido o responsável, quase 20 anos antes, por fazer a interlocução entre os militares brasileiros e os americanos na campanha da FEB na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, tornou-se amigo de Castelo Branco, que comandava o efetivo de 20 mil pracinhas na Europa.

Ao longo de todo o ano que antecedeu a tomada de poder pelos militares, os americanos fizeram de tudo para enfraquecer o governo de João Goulart. Seja por meio de cancelamento de empréstimos via FMI ou Banco Mundial, seja financiando grupos que eram abertamente contra o presidente brasileiro, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipes. Ao mesmo tempo, Gordon e Walters tramavam com os militares brasileiros a melhor maneira de assumir o poder.



Foi no início da tarde do dia 31 de março que o embaixador americano finalmente recebeu uma resposta formal dos pedidos que havia feito quatro dias antes. Por meio de um telegrama enviado diretamente do Departamento de Estado, a Casa Branca informava que havia autorizado o envio de um porta-aviões, seis destróieres, petroleiros abastecidos com 130 mil litros de combustível, além de aviões, helicópteros e tropas para as proximidades da costa do Rio de Janeiro. As 100 toneladas de armas seriam enviadas para Campinas, e não para o litoral, por meio de seis aviões cargueiros. Cerca de 12 horas depois, o general Mourão Filho iniciou a marcha com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro disposto a tomar o poder. O resto é história.



Gordon acreditava – ou queria que seus superiores acreditassem – que haveria uma sangrenta guerra civil no país. Com o poder nas mãos dos militares já no dia 1º de abril, o embaixador informou ao secretário de Estado, Dean Rusk, que a intervenção não seria necessária. Tudo havia corrido melhor do que se esperava. Apenas os paulistas haviam pedido auxílio militar aos Estados Unidos.



Foto: Bettmann/Corbis/Latinstock


MALABARISMO EXECRÁVEL


ZERO HORA 29 de março de 2014 | N° 17747

ARTIGOS


 por Marco Dangui Pinheiro*


A propósito do editorial de 27 de março de 2014, do jornal ZH, gostaria de contrapor alguns aspectos.

Preciso me identificar: sou coronel da reserva do Exército brasileiro e nas últimas eleições municipais de Porto Alegre concorri a vice-prefeito na coligação PSDB-PRP. Estou desfiliado atualmente.

A ver. Não discordo de nenhuma linha do que foi publicado, mas não me conformo com o que não foi dito. Faltou o contraponto para contextualizar os fatos em nome do bom jornalismo; como está, as conclusões do editorial me soaram capengas, canhestras, tendendo à leviandade.

Creio que haja fatos e circunstâncias históricas que não podem ser esquecidos nessa análise: a esquerda marxista queria implantar um regime socialista/comunista no Brasil, desde 1935; boa parte dessa esquerda elegeu a guerra revolucionária, e não a política, para atingir seus fins. Finalmente, a partir de 1964, conseguiu o grande mote para justificar a luta armada e motivar os brasileiros para a luta de classes: o combate à “ditadura”. Para isso, desenvolveu ações violentas, terrorismo mesmo, como guerrilhas, assaltos, sequestros, justiçamentos, execuções de inocentes, brasileiros e estrangeiros condenados por seus tribunais revolucionários (sim, havia julgamentos), atentados, e por aí vai.

“Tudo isso não justifica as violências praticadas pelos militares nos ‘porões da ditadura’”! Claro que não, mas a realidade nem sempre segue modelos ou teorias: se as forças de segurança tivessem tido conhecimento prévio do atentado ao QG do II Exército em São Paulo, em 68, o soldado Mário Koesel Filho não teria sido despedaçado na explosão de um carro-bomba, ação perpetrada pelo grupo terrorista do qual fazia parte a nossa presidente Dilma. Pergunte aos pais do soldado, que ainda estão vivos, o que eles pensam a respeito. Em episódio da Guerrilha do Araguaia, o jovem João Pereira foi esquartejado vivo, na frente dos pais, pelo grupo armado do José Genoino, porque teria colaborado com os militares. Há que se pensar no que aconteceu quando esses militares encontraram o grupo guerrilheiro na selva, apesar de o tal Genoino ser hoje deputado federal cassado e estar bem vivo, mesmo que condenado pelo STF por malfeitos com o dinheiro público.

Como no editorial citado, hoje não se fala sobre a atuação da esquerda revolucionária no Brasil. Toda a ação violenta é atribuída aos militares, num malabarismo retórico execrável.

Como brasileiro e como militar, não aceito tentarem encurralar as Forças Armadas como se elas fossem um ente usurpador da pátria. Em 35, em 64 e em 1970, os militares combateram um inimigo interno, e não brasileiros que queriam melhorar a nossa democracia. Os modelos desses inimigos eram URSS, China e Cuba, todos países socialistas/comunistas de partido único. Foi uma guerra suja, entre brasileiros, que manchou nossas mãos de sangue, mas não só as nossas.

Na minha concepção, as FFAA brasileiras venceram o cruento embate para o bem do Brasil. Juro que não queria e não quero ver meus descendentes vivendo sob o tacão de um facínora tipo Fidel Castro, há mais de 50 anos no poder em Cuba e que destruiu as esperanças daquele povo.

Mas, a considerar o Foro de São Paulo, os modelos e os objetivos continuam os mesmos para os marxistas brasileiros. Assim, enquanto a imprensa brasileira não condenar esses regimes, que patrocinaram os maiores genocídios do mundo, onde o que aconteceu no Brasil não serve nem de prólogo para as ações que eles desenvolveram para conquistar e manter o poder, não consigo, como cidadão, atribuir legitimidade às críticas ferozes exaladas para os “excessos” praticados nos porões do regime militar brasileiro do período 64/84.

Sob pena de o Brasil incorrer no mesmo erro do passado, os fatos que embasam a sua história devem ser corretamente delineados, principalmente por um veículo de informação tão expressivo como o jornal ZH, para evitar a repetição no futuro.

*CORONEL DA RESERVA DO EXÉRCITO



 

NUNCA MAIS 1964


ZERO HORA 29 de março de 2014 | N° 17747

ARTIGOS


 por Newton Alvim*




Vem aí o aniversário dos 50 anos do golpe militar e fico imaginando como é possível o surgimento de movimentos pelo Brasil, como ocorreram no sábado passado, em diversas cidades, na tentativa de reeditar aquela Marcha da Família que ajudou a motivar a queda da democracia. Tudo bem, são marchas à toa, pequenas mesmo, com todo o jeito de morrer na praia, mas onde está a memória de um dos capítulos mais lamentáveis da história do nosso país? Que desserviço é esse que estão prestando ao país, incentivando um novo tempo de tirania e tiranetes?

Depois da aventura de toda uma geração, com muitas marcas que jamais se apagam, onde está a repulsa contra ditaduras de todos os matizes? É por isso que a história deve sempre ser recontada, pois nossa memória é realmente falha, mostrando lados obscuros na perpetuação do legado contra o autoritarismo. Quem viveu aquele tempo sabe o que foi a luta de quem estava disposto a morrer – e muitos realmente sucumbiram, como bem sabemos e perpetuam as páginas da nossa história.

Hoje, os tempos são outros e se temos dúvidas e incertezas, pouca fé e incredulidade, usemos ao menos aquilo com que não contávamos na época: o voto. Apenas o voto. Façamos valer o ato de votar em quem pode mudar as coisas para melhor, para trazer o novo para um tempo de inabalável coragem de defender a democracia.

Tenhamos sabedoria de escolher em quem votar, driblando os passos de insensatez que vez e outra vemos por aí, como se nenhuma lição nos foi dada, como se tudo não passasse de um acontecimento irreal que durou pouco tempo. Na verdade, foi como um longo e tenebroso inverno, quando muitos foram presos e poucos eram soltos. Qualquer ditadura é sempre um legado do mal por destruir os afetos e as amizades que cercam a liberdade.

Pensemos em 1964 como uma ressaca, que vez e outra nos leva à deriva e não nos deixa entender direito o que houve realmente, tantos são os desastres existenciais e pesadelos incompreensíveis de jovens que amavam os Beatles e curtiam Chico Buarque e Geraldo Vandré. Eles queriam revolucionar o mundo que os cercava, mas antes de tudo desejavam viver pelo amor e pela paz, assim como pela liberdade, querendo acreditar nos sonhos mais delirantes.

Nunca mais algo como 1964, que o rito de passagem já foi feito e nos deixou sonhos difusos e mais nada, salvando-se a moral como herança imperdível. Nunca mais uma geração falida, que custou a se reerguer e traçar um novo rumo sem onipotência e messianismo. Nunca mais a amnésia crônica de que isso não ocorreu ou que foi algo banal e sem importância.

Nunca mais 1964, por haver, no futuro de todos nós, essa arma que não tínhamos em 1964: o sagrado ato de votar e mudar o nosso destino. Nunca mais a sensação de que tudo pode voltar. Nunca mais um golpe mortal para tentar apequenar ainda mais este país, depois de uma expiação de 50 anos.

*JORNALISTA

VISÃO PREOCUPANTE


ZERO HORA 29 de março de 2014 | N° 17747


EDITORIAIS



São chocantes as conclusões de estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelando que os brasileiros ainda mantêm uma visão retrógrada e machista em relação ao papel da mulher na sociedade. Nada menos do que 65% das 3.810 pessoas de ambos os sexos entrevistadas em 212 municípios disseram concordar com a afirmação de que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. A conclusão, somada a outras igualmente inconcebíveis como a de que 58,5% justificam estupros pelo comportamento das mulheres , demonstra o quanto o país ainda precisa evoluir na área social, para assegurar mais igualdade de gênero, com efetivo respeito mútuo. Os avanços dependem de campanhas institucionais eficientes e de caráter permanente, além de uma aposta firme na área educacional.

Um dos aspectos promissores do levantamento é o de revelar que, embora a visão dos brasileiros seja marcada, de maneira geral, pela ambiguidade, é nas faixas de menor nível educacional que a intolerância costuma ser maior. Ainda assim, e embora essa realidade seja reproduzida de forma massificada e até mesmo celebrada em manifestações culturais como músicas e danças, são perturbadoras as conclusões do estudo, agora respaldadas em números. O que fica evidente é uma cultura marcada pela superioridade masculina, reforçada pela tendência à desqualificação do sexo feminino. Enquanto se mantiver preso a preconceitos e a concepções socioculturais deturpadas, o país não conseguirá resolver algumas de suas mazelas mais perturbadoras, a começar pela violência.

Conscientes do problema escancarado pelo levantamento, a sociedade e o poder público já vêm promovendo avanços de ordem legal que hoje estão na vanguarda da assistência a pessoas mais vulneráveis, como crianças, adolescentes, idosos e mulheres. Ainda assim, essa rede de proteção se choca com concepções pessoais largamente majoritárias, apesar de equivocadas. Uma delas é a de que, embora a violência física contra a mulher seja rechaçada e punida, uma imensa maioria ainda acredita que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. E mais: que “roupa suja se lava em casa”. Esse olhar deformado para o problema ajuda a explicar tantos casos de violência doméstica e sexual, entre os quais o estupro, em grande parte cometidos, tolerados e acobertados no âmbito familiar.

Diante dos resultados, a presidente Dilma Rousseff advertiu ontem que “governo e sociedade devem trabalhar juntos para atacar a violência, dentro e fora dos lares”. O Brasil só será um país mais justo quando seus cidadãos conseguirem encarar-se uns aos outros com mais respeito, acima de quaisquer diferenças, o que depende sobretudo de um consistente avanço educacional e cultural.

quinta-feira, 27 de março de 2014

A NORMATIZAÇÃO DA INTERNET


ZERO HORA 27 de março de 2014 | N° 17745


EDITORIAIS



Depois de um impasse político que se prolongou por meses e de mudanças que não chegaram a desfigurar o texto original, a Câmara dos Deputados conseguiu aprovar o chamado Marco Civil da Internet, que na prática tem potencial para colocar o país na vanguarda nessa área. Um dos méritos do projeto agora na dependência do aval do Senado e da sanção presidencial para entrar em vigor é o de conseguir conciliar de forma razoável os múltiplos interesses envolvidos, além de buscar uma compatibilização entre a regulação e a liberdade de expressão. A iniciativa se diferencia também pelo fato de se preocupar mais em proteger do que em criminalizar os usuários, como é comum em marcos legais de outros países.

Num território sem lei, como no que se encontra hoje a internet no Brasil, é positivo que essa espécie de Constituição da web tenha se pautado pelo equilíbrio, numa questão cercada por tantas divergências, como ocorre no caso dos usuários, das empresas e do governo. O resultado se torna ainda mais significativo pelo fato de resultar da pressão entre esses diferentes lobbies e por terem inclusive motivado um impasse entre o chamado blocão de aliados no Congresso e o Planalto.

Numa situação dessas, todos têm que ceder um pouco, com o cuidado de não afetar conceitos essenciais, como o de neutralidade da rede, que garante isonomia no tráfego de dados, e privacidade. Certamente, ainda haverá muito o que aperfeiçoar nessa área, até mesmo pelo dinamismo dos avanços tecnológicos. Ainda assim, o importante é que, agora, o país está prestes a dispor de um instrumento legal moderno e eficiente que foi muito além de contemplar os diferentes interesses envolvidos. Uma das preocupações que precisam ser ressaltadas é de que houve não apenas a intenção preservar, mas também a de reforçar um princípio elementar como o da liberdade de expressão dos internautas brasileiros.

CRIME INOMINÁVEL


ZERO HORA 27 de março de 2014 | N° 17745


EDITORIAIS



Às vésperas de uma data triste para o país, os 50 anos do golpe civil-militar de 1964, começam a vir a público depoimentos de agentes da repressão que reafirmam, de forma explícita ou com eufemismos, o uso da tortura de presos políticos durante o regime ditatorial. Foi assim com o depoimento do coronel reformado Paulo Malhães à Comissão Nacional da Verdade. Malhães não só admitiu que os inimigos do regime sofriam violências nas prisões, como forneceu detalhes aterrorizantes sobre a mutilação de corpos, para que não fossem identificados. O militar repetiu que não se arrepende do que fez, a mesma linha de defesa do também coronel Brilhante Ustra, que não se referiu diretamente à tortura, mas a excessos, em entrevista a Zero Hora do último domingo.

Ambos convergem para a tentativa de justificar seus atos e dos militares que torturaram ou ordenaram torturas, como se tal recurso fosse aceitável para que, segundo eles, chegassem à verdade. Ambos, a tortura e o conteúdo dos depoimentos à Comissão e à ZH, são abomináveis. Torturadores são criminosos sádicos, a tortura é um crime repugnante, e o Estado torturador ofende a civilização, o bom senso e a própria condição humana. Não se pode transigir em relação a isso. Ressalte-se, no entanto, que Ustra, Malhães e outros já denunciados por atos violentos contra prisioneiros agiram em nome de quem detinha o poder. Os militares, seus superiores e seus subordinados foram usurpadores do Estado e se utilizaram de suas estruturas para agir de forma autoritária e criminosa.

Há muito, antes mesmo da redemocratização, o país se questiona sobre as arbitrariedades cometidas durante a ditadura. O depoimento de Malhães apenas confirma o que os brasileiros já sabiam em relação à tortura, à morte e ao desaparecimento de presos políticos. É compreensível que, em meio à consternação de tais revelações, parcela importante de cidadãos condene a oportunidade dada a torturadores para que falem de seus atos ou mesmo neguem acusações. O que a Comissão da Verdade e o jornalismo fazem, em casos como esses, é parte do cumprimento de suas atribuições, para o esclarecimento de fatos históricos, por mais repugnantes que possam ser.

É natural também que a repercussão dos depoimentos fortaleça o ponto de vista de quem entende que a tortura é imprescritível. Subjugar e submeter prisioneiros a atos violentos, humilhantes e moralmente insustentáveis constituem de fato crime contra a humanidade, sem prescrição, como determinam as convenções internacionais, das quais o Brasil é signatário. Responsáveis por torturas não podem se proteger nas controvérsias jurídicas e no argumento de que agiram politicamente. O Brasil precisa iluminar e julgar tais fatos e fortalecer a consciência de que os regimes totalitários nunca mais se repetirão.