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sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

HERÓI DA TOLERÂNCIA


ZERO HORA 06 de dezembro de 2013 | N° 17636

DAVID COIMBRA

NELSON MANDELA

Aos 95 anos, morreu ontem o homem que era um herói acima de facções, acima de fronteiras e acima de religiões. Nelson Mandela, um orador que discursava para todos os tons e representava todas as cores, necessariamente juntas, deixou o mundo ao qual ensinou lições de aceitação do diferente. O ícone da luta contra o apartheid não resistiu aos graves problemas pulmonares decorrentes de uma tuberculose contraída na ilha de Robben Island, perto de Cidade do Cabo, onde passou 18 dos 27 anos de detenção durante o regime de segregação racial.

Nelson Rolihlahla Mandela foi o maior gênio político da história da humanidade. Ninguém o superou, nem os conquistadores bélicos Júlio César, Alexandre e Napoleão, nem os campeões da democracia Churchill e Lincoln. Ninguém. Porque Nelson Rolihlahla Mandela conseguiu algo que nenhum desses líderes mundiais conseguiu: sem dar um tiro, sem erguer a mão ou a voz, apenas com a inteligência e o poder de argumentação, Mandela pacificou uma nação inteira.

Foi uma façanha única, porque o regime racista da África do Sul era único. Jamais houve um lugar no planeta em que não existisse racismo, verdade, mas, no caso da África do Sul, o racismo era o núcleo do Estado. O nazismo e o fascismo eram dogmaticamente racistas, mas, sob esses regimes, ainda havia um pouco de hipocrisia pública, uma farsa legal. Na África do Sul, não. Nunca a segregação racial foi tão aberta, tão oficial, quanto na África do Sul. Uma segregação com nome próprio: apartheid.

Mandela foi, ele próprio, vítima do apartheid. Quando jovem, Mandela fez por merecer seu nome do meio. Rolihlahla, em xhosa, significa “encrenqueiro”. Mandela era um encrenqueiro a favor dos direitos dos negros. Um militante da luta armada. Por isso, foi preso em 1962. Passou 18 dos 27 anos de detenção isolado em uma ilha, vivendo numa pequena cela do tamanho de um banheiro. Nesse tempo, conheceu seus carcereiros, aprendeu com eles e se transformou. Quando saiu da cadeia, Mandela não pregava mais a luta; pregava a paz. Pela paz, venceu.

Conheci Mandela nessa época. Em 1991, estava preparando uma reportagem sobre os 30 anos da Campanha da legalidade e fui ao Rio para entrevistar o então governador do Estado, Leonel Brizola. Mandela também se encontrava no Rio, e também queria falar com Brizola. Um ano antes, fora libertado; três anos depois, seria eleito presidente. O encontro dele com Brizola estava marcado. O meu, não. Brizola não aceitava falar sobre a Legalidade, talvez para não irritar os militares, ele que ainda aspirava ser presidente do Brasil. Fiquei dois dias e duas noites de plantão na antessala do gabinete dele, insistindo com a entrevista, e nada. Nesse ínterim, os secretários de Estado do Rio se sensibilizaram com meu drama. Um deles contou que Brizola se reuniria no fim da tarde com Mandela, no Copacabana Palace. A entrada da imprensa seria proibida na primeira parte do encontro, mas o secretário se dispôs a furar o bloqueio e me colocar diante de Brizola. A partir daí, tudo comigo.

De fato, no fim da tarde, lá estava eu, no saguão do Copacabana Palace, em frente a Nelson Mandela e a Leonel Brizola. Olhei para Mandela, um homem muito alto, de aparência serena. Ele me olhava e sorria com candura, decerto surpreso com aquele jornalista que tanto falava com Brizola, sem lhe dar a menor importância. Bem. Falei, falei, falei e Brizola NÃO CONCORDOU em conceder a entrevista. Fiquei desesperado. Para conseguir a viagem, eu HAVIA MENTIDO ao diretor de redação que a entrevista estava marcada. Ou seja: seria demitido, se voltasse sem a palavra de Brizola. Mas agora Brizola e Mandela já se afastavam para se reunir a portas fechadas e depois receberam a imprensa e só muito mais tarde acabei praticamente saltando sobre Brizola e convencendo-o a me dar a entrevista, o que ocorreu depois da meia-noite.

No fim, deu tudo certo com a matéria, mas... e Mandela? Eu, de certa forma, havia ignorado Mandela... Talvez não houvesse muito mais a fazer naquela circunstância, mas hoje estremeço ao pensar que estive a um braço de distância dele, o maior gênio político da história da humanidade. Mais inconformado fiquei ao conhecer in loco a obra de Mandela, quando fui à África do Sul, na Copa de 2010. Conversando com os sul-africanos brancos e negros, fiquei espantado: todos apresentavam o mesmo discurso. Todos. Cem por cento. Os sul-africanos repetiam que precisavam esquecer o passado, que tinham de conviver uns com os outros para construir uma nação e que, para isso, necessitavam de tolerância. Em resumo, Mandela os convenceu a perdoar. Em apenas quatro anos, Nelson Rolihlahla Mandela fez com que milhões de ex-oprimidos que sentiam raiva e milhões de ex-opressores que sentiam medo relegassem suas fúrias e seus temores em nome da paz.

Neste sentido, a obra de Mandela é a maior obra cristã da Terra, desde que Jesus arrastou as sandálias pelo pó da Palestina, há 20 séculos. “Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo”, bradou Jesus, no Sermão da Montanha, e acrescentou: “Ouviste que foi dito: olho por olho, e dente por dente. Eu digo-vos: não oponhais resistência ao mau; se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda. E se alguém quiser pleitear contigo para te tirar a túnica dá-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas”.

Nunca ninguém conseguiu obedecer a essa ordem cristã, que é o cerne duro do cristianismo. Nem a própria Igreja, com sua Inquisição, suas Cruzadas e suas Guerras de Religião, foi capaz de amar seus inimigos. Mandela foi. E mais: ele fez com que milhões de outros homens compreendessem a verdade deste conceito, e o fez funcionar na prática. A África do Sul de Mandela é o cristianismo aplicado.

O mais admirável da façanha de Mandela nessa África do Sul multirracial da bandeira do arco-íris é que o país tornou-se assim exclusivamente por causa dele. Por causa de Mandela. Prova-o a história da chamada Noite da Faca. Segundo essa espécie de lenda que corre pelas savanas tórridas do interior e pelo asfalto cinzento das grandes cidades, os negros sul-africanos se armariam de facas, cutelos e outros instrumentos cortantes no dia da morte de Mandela. Então, sairiam à rua para apunhalar todos os brancos que encontrassem. Seria a vingança pelos anos de apartheid, vingança que eles reprimiram tão-somente porque Mandela pediu.

Quando eu perguntava a brancos e negros sul-africanos se eles acreditavam que ocorreria a Noite da Faca, eles em geral erguiam as sobrancelhas e respondiam:

– Acho que não...

“Acho”. Não uma certeza. “Acho”. Como se a Noite da Faca pudesse mesmo acontecer e não fosse, como ora se constata, nada mais do que uma lenda. O fato de essa história ter sido concebida é um atestado do que representa Mandela para a África do Sul. A mera existência dele impediria a revanche ansiada. Seu desaparecimento seria o desaparecimento do grande pai, do grande líder, do homem que dizia o que era certo e o que era errado. Só que a construção de Mandela é ainda maior, porque não será derrubada com sua morte. Mandela convenceu as mentes sul-africanas e, convencendo-as, infiltrou-se em suas almas. Ele mostrou o que é o certo a fazer, e é assim que eles continuarão fazendo. “Vós sois o sal da terra”, disse-lhes Mandela. E eles acreditaram nele.

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