Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

domingo, 17 de abril de 2011

NEM REPÚBLICA, NEM DEMOCRACIA E NEM ESTADO DE DIREITO


Entrevista com o jurista Fábio Konder Comparato - Carta Capital - Especial 2010 - edição 578. JANEIRO 2010 - www.inesc.org.br.

No Brasil, hoje, não existe “nem República, nem democracia, nem Estado de Direito”, segundo o jurista Fábio Konder Comparato. Professor emérito da USP, doutor pela Sorbonne e Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, Comparato observa que a atual Constituição já foi remendada 68 vezes, mas em nenhuma dessas ocasiões o povo foi consultado. O jurista tornou-se um crítico implacável do atual governo. “Lula não enfrentou os grandes problemas nacionais. E não o fez porque põe em primeiro lugar o seu poder e prestígio”, avalia. Comparato diz ainda que Lula tenta exercer influência sobre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) nomeados por ele. “Alguém do próprio Supremo me contou que o presidente, em alguns casos, antes do julgamento, chama os ministros que nomeou para dizer qual a vontade dele. Eu espero que eles não cumpram a vontade do presidente”, afirma.

Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.

CartaCapital: O fato de escândalos virem à tona hoje seria sinal de uma melhora no País? O sistema jurídico funciona a contento?
Fábio Konder Comparato: Eu descobri, num conto de Machado de Assis, a explicação que sempre procurava sobre o caráter nacional brasileiro. O conto é “O Espelho” e trata-se de alguém que numa roda de amigos afirma com espanto geral que cada um de nós tem duas almas. Tem uma alma externa que é aquela sempre mostrada ao público e, muitas vezes, é utilizada para nos julgarmos. E tem uma alma interna que é sempre escondida e serve para nós julgarmos o mundo de dentro para fora.

O nosso sistema jurídico político de fato tem duas almas, ele é dúplice em ambos os sentidos da palavra: é dobrado e dissimulado. Existe a alma externa que pode ser resumida no princípio de que todos são iguais perante a lei, mas existe a alma interna que não sustenta, mas está plenamente convencida de que há sempre alguns que são mais iguais do que os outros.

CC: O senhor poderia dar um exemplo?
FKC: Os exemplos abundam. Nesse particular, gostaria de lembrar mais um exemplo literário. Nas “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, três senhoras vêm à casa do Major Vidigal, que era o chefe de polícia, para pedir a condescendência dele em relação a um jovem soldado. O major fecha a carranca e diz que não pode fazer nada porque existe uma lei. Uma das senhoras diz: “ora a lei, a lei é o que senhor major quiser”. Então, completa o Manuel Antonio de Almeida: “o major sorriu-se com cândida inocência”. É um pouco isto.

A lei existe, em princípio, igual para todos. Mas sabemos. Como no último caso do “Arrudagate” em Brasília, a lei penal dificilmente se aplica ou não se aplica a todos aqueles que estão no poder. É exatamente isso que explica o fato de termos uma Constituição modelar, mas a nossa vida política estar muito longe do modelo constitucional. A Constituição se abre com a declaração de que a República Federativa do Brasil é um estado democrático de Direito e, na verdade, nós não temos nem República, nem Democracia, nem Estado de Direito.

CC: Por que não?
FKC: No Brasil não existe a consciência de bens públicos. Quando um bem não é propriedade particular de alguém, ele não pertence a ninguém. Então, a grilagem de terras públicas e a utilização de canais de comunicação, com o espaço público usado para a defesa exclusiva de interesses privados, é a regra geral. Um outro exemplo que todos conhecem no exercício dos cargos públicos: existe uma regra de ouro (uma referência moral): ‘Mateus, primeiros aos teus’. Quanto à democracia, a nossa alma interior, para voltar à comparação inicial, é e sempre foi a oligarquia. Povo não existe porque, a rigor, ele só passa a ter consciência dele mesmo nas grandes disputas futebolísticas. Fora disso, o povo não tem consciência de que ele existe, de que é digno e merece ser tratado com respeito.

Numa democracia, a norma ou conjunto de normas supremas que é a Constituição, obviamente, tem que ser aprovada pelo soberano. A soberania do povo é o supremo poder de controle. Mas nenhuma Constituição brasileira, até hoje, foi aprovada pelo povo. A atual Constituição já foi remendada 68 vezes, o que dá a apreciável média de mais de três remendos por ano. Em nenhuma dessas ocasiões chegou-se sequer a pensar em consultar o povo. Já não digo pedir a aprovação. E o Estado de Direito? Vou dar um exemplo gritante: os controles jurídicos sobre os poderes do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público são muito débeis, em alguns casos totalmente inexistentes.

Um exemplo atual com relação ao Ministério Público Federal: em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados de Brasil (OAB), por uma proposta minha, decidiu ingressar com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no STF objetivando a definição, pelo tribunal, sobre a abrangência da lei de anistia de 1979. Ela beneficia ou não os homicidas, torturadores, estupradores do regime militar? Pela lei que rege essa demanda, o Ministério Público, quando não é o arguente, tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria Geral da República foi intimada no dia 2 de fevereiro de 2009 a se manifestar e, até hoje, mais de dez meses depois, não devolveu os autos. Em agosto desse ano eu fiz uma petição ao relator, pedindo a ele que mandasse requisitar os autos. Essa petição não foi sequer despachada porque os autos não estavam no STF.

Ora, existe uma lei que regula os casos de improbidade administrativa. Um deles é deixar de praticar ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei. Acontece que esta ação de improbidade administrativa é proposta unicamente pelo Ministério Público. Então, o que pode fazer a OAB? Representar à Procuradoria Geral da República dizendo que o seu chefe cometeu uma improbidade administrativa?

CC: Nesse caso, fala-se de 144 mortes sob tortura e 125 desaparecidos...
FKC: Exatamente. Mas essa insensibilidade é histórica. Durante quase quatro séculos nós tivemos uma escravidão. Foram escravizados cerca de cinco milhões de africanos e afro descendentes. O regime da escravidão era de uma crueldade exemplar. De tal maneira cruel, sobretudo no campo, que o escravo para sair da escravidão só tinha dois caminhos: o suicídio ou a fuga. Hoje nenhuma escola fundamental do Brasil, pública ou privada ensina aos jovens brasileiros o que foi o crime coletivo da escravidão. Para sair da escravidão só tinha dois caminhos: o suicídio ou a fuga.

Hoje nenhuma escola fundamental do Brasil, pública ou privada, ensina aos jovens brasileiros o que foi o crime coletivo da escravidão. Nós, no dia 13 de maio de 1888, viramos a página. E é isso o que queremos fazer hoje com os horrores do regime militar. Está nos nossos costumes. O pior é que nos consideramos um povo bom, compassivo, generoso. Toda vez que falo o contrário, sou duramente criticado. Ou então acham que, como dizia a minha santa mãe, já nasci com mau humor.



CC: Por que não existem no Brasil mecanismos para revogar mandatos?
FKC: A ausência desses mecanismos de democracia efetiva tem origem no longo costume de dominação absoluta da qual a escravidão é um dos elementos. Para o povo em geral, quem está no poder pode praticar quaisquer crimes. Se ele for generoso, se for um benfeitor para o povo, está absolvido. O povo, de modo geral, não tem consciência de que tem direitos. Para ele, direito é uma vantagem que às vezes ele obtém, outras vezes não. Essa noção de que direito é uma exigência não entrou na mentalidade popular.

Acabei de ler Eça de Queiroz. Para ele, delegar poderes importa possuir direitos. Quem possui um direito e um poder e o delega, tem direito a retirá-lo. No caso contrário, a delegação era uma coisa ilusória. Não se diria chamar delegação, diria chamar-se abdicação. Pois bem, tenho também na minha passagem pelo conselho federal da OAB a satisfação de ter proposto e obtido a concordância do conselho para que se propusesse ao Congresso Nacional uma emenda da Constituição criando o recall. Isto foi feito em 2005, com a emenda constitucional numero 73, no Senado Federal.

Ela foi assinada em primeiro lugar pelos senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Eduardo Suplicy (PT-SP). Hoje, me dou conta de que, nessa proposta, criei condições muito difíceis para que o recall acontecesse por iniciativa popular. O proponente, o senador Simon, ultimamente resolveu fazer um aditivo no qual torna ainda mais exigente a condição prévia para que possa haver o recall. Qual o objetivo disso? Eles não querem o recall? Eles querem sim, mas como fachada. Exatamente o que acontece com o plebiscito e o referendo. Eles dirão que a nossa constituição prevê plebiscito e referendo só que essas manifestações da vontade soberana popular só podem existir com autorização do Congresso. Somos tão inventivos em matéria jurídica que criamos a figura do mandante, que depende da autorização do mandatário para poder exprimir a sua vontade.

CC: A respeito da censura, o que acontece quando veículos de comunicação passam a manipular informações?
FKC: Esse é um ponto fundamental para a nossa abertura. A verdadeira democracia republicana. Nós precisamos distinguir liberdades públicas das liberdades privadas. As liberdades públicas dependem de uma regulação legal ou constitucional. Toda vez que, por exemplo, as eleições não são reguladas, não existe a liberdade privada eleitoral. Foi o que aconteceu durante o regime militar. Em matéria de comunicação de massa estamos hoje enfrentando uma supressão da liberdade pública. Porque a liberdade pública significa uma regulação da manifestação social por esses veículos de comunicação social, no sentido de impedir que eles se utilizem desse instrumento da maior importância em beneficio próprio. Quando se diz, por exemplo, que o rádio e a televisão usam o espaço público, isso significa um espaço do povo, não é do Estado.

O Estado tem que administrar esse espaço que pertence ao povo. É exatamente por isso que não deveria haver, mas há, concessão de rádio e televisão sem que o Estado se manifeste, sem licitação pública. A concessão pública exige licitação e toda a renovação de concessão de rádio e televisão é feita sem licitação. Agora, me manifestei em nome do Conselho Federal da OAB na renovação da concessão do Canal 21 de Televisão. Essa rede pertence à Bandeirantes, mas foi arrendada. Porque ela ganha muito mais dinheiro arrendando do que usando. Isto é a demonstração daquilo que nós vínhamos falando antes. Não existe bens públicos quando alguém chega a ter a posse de alguma coisa que é pública, que é do povo. Ele considera isso propriedade dele. Então, pode vender, arrendar, fazer o que quiser.

CC: Com a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) essa situação pode mudar?
FKC: Tenho muita esperança. A Confecom foi o grande passo avante. Tanto que algumas entidades de rádio e televisão se retiraram. Ou seja, elas têm medo. O importante é levantar as idéias. Quando elas são justas, protegem a dignidade do povo, mais cedo ou mais tarde acabam sendo admitidas. A mídia impressa até metade do século XX era um contra-poder. Atuava para a manifestação de opinião livre. É exatamente por isso que não só o Estado como a Igreja procuraram censurar a imprensa, a edição de livros etc. Mas a partir de meados do século XX, houve uma mudança radical nesse panorama, criou-se um processo de concentração empresarial.

Não só dos órgãos de imprensa, mas também de rádios, televisão e internet, formando conglomerados. Nos Estados Unidos, no começo dos anos 1980, havia mais de 100 redes de televisão. Hoje, existem cinco apenas. Até 1996, os EUA foram um modelo de regulamentação dos meios de comunicação de massa para evitar a concentração. A maioria republicana conseguiu derrubar essa regulamentação. Agora, a concentração empresarial dos meios de comunicação de massa se espraia para o mundo todo. Hoje, os meios de comunicação de massa são aliados do poder. Os governos não querem de forma alguma entrar em choque com os grandes órgãos de comunicação. É aquela prudência de que falava Tancredo Neves ao aconselhar um jovem político mineiro: “meu filho, brigue com quem você quiser, menos com a Rede Globo”. Agora, a decisão do STF que considera revogada a lei de imprensa é um escárnio. Ela só faz aumentar abusivamente um poder que já não tem limites.

Por exemplo: fui qualificado carinhosamente pelo diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otávio Frias Filho, de cínico e mentiroso. Eu tinha na época o direito de resposta e usei. Hoje, eu não poderia mais usar o direito de resposta. Vocês dirão: mas como, está na Constituição. O próprio acórdão do STF diz que o direito de resposta continua válido. Sim, mas sem regulamentação não há direito de resposta. Eu mando a minha resposta ao jornal e ele publica quando ele quiser, como ele quiser. Ele pode publicar a minha resposta e, logo em seguida, como fez a Folha de S. Paulo, escrever uma nota me insultando. Estamos hoje numa posição realmente critica.

CC: No Brasil, se criou um discurso de um órgão de controle externo do judiciário onde, na sua composição, a maioria dos controladores são magistrados. Como o senhor vê esse quadro de não participação do cidadão na Justiça?
FKC: É a ausência do Estado de direito. Os antigos diziam: “é preciso que haja governo das leis, não governo dos homens”. Hoje, nós consagramos no mundo inteiro o princípio da separação de poderes. Mas esquecemos que o principio da separação de poderes é uma das formas de controle do poder. Existe uma outra forma que é a vertical, ou seja, do povo em relação àqueles que estão exercendo cargos públicos. Em relação ao Judiciário, os controles são mínimos, senão inexistentes. E o que é mais extraordinário para nós é verificar que a Constituição imperial de 1824 tinha uma ação popular criminal contra juízes de direito. Eu vou ler o artigo 157: “Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles, juízes de direito, ação popular que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo guardada a ordem do processo estabelecida na lei.”

Hoje, é obvio que precisamos instituir ouvidorias populares em relação ao funcionamento do Judiciário. Isso desde o município até os órgãos superiores. Uma das formas mais abusivas de manifestação dos magistrados é o fato de eles se considerarem livres para fazer quaisquer comentários sobre a situação política econômica e social do País e, até mesmo, sobre causas em curso. Propus ao conselho federal da OAB que se incluísse no código de ética da magistratura a proibição do magistrado dar entrevistas à imprensa. A declaração dele tem que ser nos autos. No momento em que o Judiciário brasileiro perde a confiança ou não adquire a confiança ele está sujeito a ratear. As questões mais importantes acabam não sendo decididas ou são decididas em função de interesses particulares.



CC: Cortes constitucionais na Europa têm juízes com mandatos de sete anos sem recondução. Poderia ser fixado um tempo de mandato?
FKC: Em princípio, sou a favor para os tribunais superiores. No meu projeto de constituição de 1985, eu previa isto. Previa também uma regra de estrito controle da atuação dos magistrados no que diz respeito à honestidade. O fundamental é estabelecer uma regra de nomeação que não passe pela Presidência da República. No Brasil, não temos um sistema presidencial de governo. Temos o presidencialismo. O presidente da República Federativa do Brasil tem mais poderes que o presidente dos Estados Unidos, sobretudo no caso de nomeação de juízes para os tribunais superiores. Sei o que é isso porque tenho acompanhado no conselho federal da OAB a disputa para obter as boas graças do presidente. E não é só para magistrados dos tribunais superiores. No caso de chefe do ministério público, é um absurdo total. Vejam agora o caso do governador José Roberto Arruda. É só o procurador geral de justiça do Distrito Federal que pode denunciá-lo. Mas ele foi nomeado pelo Arruda. Como vai denunciá-lo?

A mesma coisa acontece com os juízes do STF. Alguém do próprio Supremo me contou que o atual presidente da República em alguns casos, antes do julgamento, chama os ministros que nomeou para dizer qual a vontade dele. Eu espero que os ministros chamados não cumpram a vontade do presidente. Eu tive a ocasião de dizer ao Lula, em março de 2003, quando fui visitá-lo em Brasília e estava próxima a nomeação de um ministro do STF: “Lula, você tem que saber que o ministro do Supremo não é juiz do presidente da República. Ele não está ligado ao presidente. Ele é um juiz que deve gozar da confiança do povo. Você tem que escolher o melhor na sua apreciação, mas não necessariamente aquele que é mais ligado a você”. Naquela época, eu ainda tratava o ilustre presidente de você porque tinha um longo período de amizade.


CC: Havia uma regra de ouro (uma referência moral) de que, para uma função no Supremo, não se postula e também não se rejeita.
FKC: Foi dita por Afonso Pena, por ocasião da nomeação de Pedro Lessa (em 1907). Ele sugeriu o nome e o Pedro Lessa, que era um ilustre professor catedrático de filosofia de direito, mineiro, como o presidente Afonso Pena, tomou o trem e foi ao Rio de Janeiro. Disse ao presidente que ficava muito honrado com aquela lembrança do nome dele, mas que ele não poderia aceitar porque tinha um grande escritório de advocacia em São Paulo e era professor da faculdade de Direito. Afonso Pena ouviu tranquilamente e limitou-se a dizer: professor, eu cumpri meu dever, agora resta saber se o senhor vai cumprir o seu. E ele voltou para São Paulo e mandou um telegrama dizendo que aceitava.

CC: Um jurista disse recentemente que os primeiros seis meses de um ministro não podia ser levado muito em conta porque ele teria algumas obrigações com relação ao chefe do executivo que o tinha nomeado. Isso existe? É possível alguém com formação jurídica não saber que o juiz é independente?
FKC: Em muitos casos sim, tanto que eu soube do desconsolo do presidente em relação ao ministro por ele nomeado que votava contra os interesses do governo. E ele reclamou, com a linguagem elegante que lhe é peculiar, desse ministro. Alguém observou a ele que o ministro não era subordinado à Presidência. A respeito da independência, acho natural que haja um sentimento de gratidão. Entre vários concorrentes, se eu sou o escolhido e tenho certeza de que não fui pressionar aquele que me nomeou, sinto um respeito e gratidão pelo responsável pela nomeação. Mas é exatamente isso que não deve acontecer. Eu volto ao caso do procurador-geral da República e do procurador-geral de Justiça nos estados e no DF. Ele é nomeado e algum tempo depois recebe um inquérito em que o chefe do executivo está envolvido em corrupção. O que ele vai fazer?

Vai pedir uma audiência ao chefe do executivo e perguntar: “O senhor me permite que eu o denuncie?” Quais são os casos históricos de chefes de executivo que foram denunciados pelo chefe do Ministério Público? Eu só conheço um. É um grande mérito daquele que pôde assim proceder, o Dr. Aristides Junqueira Alvarenga (procurador-geral da República entre 1989 e 1995). Ele denunciou o então presidente Fernando Collor. Um outro aspecto que me leva a condenar a nomeação de juízes de tribunais superiores pelo presidente é que, praticamente, não há controle do Senado. Nos Estados Unidos, mais de 50 juízes indicados pelo presidente não foram aceitos pelo Senado. No Brasil só houve um caso.

CartaCapital: Nos últimos 40 anos, nunca se condenou um político no Brasil. Uma coisa é ser agradado, outra é ficar agradecido. Quando alguém é escolhido pelo presidente da República, evidentemente a pessoa se sente agradada por ter sido escolhida e por preencher as condições. Mas agradecido no sentido de dever favores e ter que prestigiar são coisas absolutamente diferentes.
FKC: No começo da República, a Constituição de 1891 tinha um sistema estranho de nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal. O ministro era nomeado pelo presidente, tomava posse e só depois havia o controle do Senado. Naquela época, o Floriano Peixoto estava em litígio com o Supremo devido às truculências de que ele era habitual. Era a época dos famosos habeas corpus, da extensão brasileira do habeas corpus que se deve a Rui Barbosa (jurista) e Pedro Lessa (ministro do STF nomeado em 1907). Então, o Floriano, quando abriu uma vaga no Supremo, disse: “Muito bem, agora eu quero ver como eles vão se comportar”. Ele nomeou o seu médico, o Dr. Barata Ribeiro. E aguardou. Passado um ano, o Senado rejeitou a nomeação. Todos disseram que todos que o Dr. Barata Ribeiro atuou muito bem, ele foi um excelente juiz.

Na época do Getúlio, o meu querido tio, Evandro Lins e Silva, que foi um dos maiores advogados criminalistas que esse país já conheceu, além de procurador-geral da República, atuou na época do infame Tribunal de Segurança Nacional na defesa de presos políticos. Ele impetrou mais de mil habeas corpus na época, sempre gratuitamente, seguindo a imagem de João Mangabeira (jurista, político e escritor), que ele auxiliava. E ele sempre me contou esse episódio: vagou um cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal e o Getúlio resolveu nomear o presidente do Tribunal de Segurança Nacional, Frederico de Barros Barreto e, no dia seguinte da nomeação (na época não havia Senado), o Evandro foi, como ele sempre fazia todos os dias de expediente, ao cartório do Tribunal de Segurança Nacional e ao chegar ele viu que o escrivão se levantou e veio ter com ele e disse: “Dr. Evandro, eu sou candidato ao Supremo Tribunal Federal porque reputação ilibada o senhor não há de me negar. E o notável saber jurídico vem no decreto”.

CC: E não temos um foro privilegiado para examinar de pronto violação de princípios fundamentais. Por outro lado, temos foro privilegiado para as autoridades, bem como prisão especial...
FKC: É porque nós não temos espírito republicano. Como eu dizia, o espírito republicano está nos costumes e na mentalidade social, de modo que nós temos que trabalhar nesse sentido. Como reformar a mentalidade social, como reformar os costumes? Eu tenho a grata satisfação de ter procurado contribuir modestamente nesse sentido e criei uma escola de governo, em São Paulo, e já conta com algumas filias fora de São Paulo.

É um trabalho lento, mas ele tem que ser feito no sentido de abrir a mentalidade para essa necessidade de se considerar que o bem comum do povo está sempre acima do interesse particular, seja de sindicatos, de partidos, de igrejas, da própria burocracia estatal. E isso significa que numa verdadeira sociedade republicana não há privilégios, ou seja, ninguém pode gozar de um direito especifico só para ele. A palavra privilégio vem do latim (privilegium, formado a partir de privus, privado, e lex, lei), ou seja, uma lei particular, além das leis gerais fazem-se leis específicas para beneficiar fulano ou sicrano.

CC: Quais as conseqüências de mais um escândalo, o do DEM em Brasília, para o País?
FKC: É mais uma vez um caso em que o povão dirá: “fulano roubou, o único erro dele é que não soube roubar. Ele não foi inteligente. Então, vou ser inteligente e vou roubar”. Essa é a conseqüência. Mas em relação ao caso Arruda, acho que poderíamos, desde logo, ensaiar algo que venho tentando há algum tempo. Está previsto na Constituição brasileira uma ação penal privada substitutiva da ação pública. Isto ninguém até hoje tentou fazer. Nós temos que ver, julgar e agir. Eu já mandei uma mensagem ao conselho seccional da OAB propondo que seja feita uma representação ao Ministério Público do DF apontando todos os crimes cometidos pelo governador e seus amigos do bolso.

Aguardemos a conclusão do inquérito policial. Apresentado o inquérito policial, se em cinco dias o Ministério Público não propuser a ação penal, qualquer um pode, como cidadão, propor uma ação penal substitutiva. Isso pode não dar certo, mas é um precedente e nós temos que multiplicar precedentes desse tipo. É a necessidade de uma cidadania ativa, até no campo judiciário. O cidadão não é alguém que recebe benefícios do governo e tem direito à bolsa-família. É alguém que participa do governo.

CC: O nosso Código de Processo Penal prevê prisão cautelar preventiva quando há indicativos de o acusado continua a operar como chefe de organização criminosa. Esse instrumento não pode ser aplicado ao caso Arruda? Afinal, ele continua a manipular o legislativo do DF, distribui verbas públicas...
FKC: Faz pressão sobre a polícia... A minha proposta ao Conselho Federal da OAB, que aceitou e foi ao judiciário, é a autonomia da polícia judiciária. A polícia judiciária não pode ficar submetida ao chefe do poder executivo porque ela tem que ter liberdade de investigar os crimes eventualmente cometidos pelo chefe do executivo e seus secretários ou ministros.

CC: Há quem defenda (no Supremo essa questão está pendente) que o Ministério Público não pode investigar.
FKC: Eu fiz a proposta de emenda constitucional e mantive contato com a Polícia Federal, tenho alguns amigos lá, e alguns aceitaram a idéia, mas no seio da Polícia Federal não prosperou por causa do segundo escalão. Eles não querem autonomia, querem continuar dentro do Executivo e, evidentemente, se não houver pressão dos órgãos policiais o Congresso não vai decidir.

CC: Por que no Brasil não há a punição dos responsáveis por mortes e torturas na ditadura?
FKC: Nós temos essa tradição da página virada. Não nos esqueçamos de que grande parte dos arquivos da escravidão foram eliminados no começo da República. Eu quero prestar uma homenagem à CartaCapital, que é um dos raros meios de comunicação que enfrenta esse problema. A grande maioria dos veículos quer que os horrores do regime militar continuem fechados a sete chaves.

CC: O STF pode vir a concluir que a anistia não beneficiou os torturadores?
FKC: O STF vai ter que mostrar a cara. Vai dizer perante o público, não só no Brasil, mas na América Latina e no mundo todo, se realmente os donos do poder podiam, antes de largarem o poder, absolver antecipadamente os homicidas, os torturadores e os estupradores que trabalharam para eles. Nós tivemos um terrorismo de Estado no Brasil. E a própria lei de 1979 diz que não são abrangidos pela anistia aqueles que cometeram atos de terrorismo. Uma razão a mais para o STF considerar que a lei não pode beneficiar esses criminosos. Eu encaro essa decisão do STF como um grande avanço e qualquer que seja a decisão o assunto não vai ser encerrado.

Se, na pior das hipóteses, que eu espero não acontecer, o STF julgar improcedente a argüição de descumprimento de preceito fundamental, eu, se ainda estiver em vida, ou vários outros militantes de direitos humanos e de outras organizações, inclusive a própria OAB, iremos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para fazer uma denúncia contra o Estado brasileiro. Acho muito difícil que a Corte Americana de Direitos Humanos absolva o Estado brasileiro porque nós somos o único país na América que se recusou, até hoje, a processar e julgar os criminosos que atuaram em defesa da ditadura.

CC: Como o senhor vê a posição do atual governo, que tem ministros contrários aos torturadores, como Paulo Vanucchi, e teve um advogado geral da União, José Antonio Toffoli, defendendo que a anistia perdoou esses criminosos?
FKC: Tenho muita dificuldade em aceitar isso do presidente da República. Ele não cumpre o seu dever de ofício. Ele tinha que manifestar sua posição como presidente num caso de dignidade nacional. Mas segue a sua linha política de conciliação e negociação. Ora, não se negocia com a dignidade humana. Eu disse isso na última conversa última que tive com ele. Quando lhe falei a respeito da política econômica e dos juros, que na época estavam sufocando a economia brasileira, ele disse que negociava com os banqueiros. Eu devia ter dito a ele: “Lula, você não é mais dirigente sindical, você é presidente da República, o presidente não negocia com banqueiros. Ele cumpre a Constituição e atua em beneficio do povo”.

CC: Qual a função da universidade nos dias de hoje?
FKC: No capitalismo, todos nós temos que venerar o Deus mercado e levamos a ele em seu altar algumas pessoas a serem sacrificadas, no caso são os trabalhadores, os consumidores, enfim, o povo pobre sofrido. O que acontece é que o padrão das universidades no Brasil caiu verticalmente com o regime militar, devido à privatização. A política do regime militar é a de isolar e fazer definhar as universidades públicas, porque considerava que eram focos, ninhos de revoltas contra os militares. Então deu todas as facilidades para o desenvolvimento das faculdades de fim de semana, das faculdades pague-passe e tornou isso a regra geral. E as próprias universidades públicas vêm sofrendo de uma doença terrível, que é a doença da alienação. Um dos aspectos da falta de espírito republicano.

Cada um só pensa em si. Isto é, o professor só que saber da sua carreira, o diretor do relatório final, o reitor idem e as universidades vão se afastando cada vez mais dos grandes problemas nacionais. Nós tivemos a redação de uma Constituição, de 1988, sem nenhuma participação expressiva do meio universitário, é como se isso não interessasse às universidades. Nós estamos agora com problemas de energia e as universidades são colocadas à margem desses problemas, chamam-se as grandes empresas, os empresários têm uma visão, segundo eles, muito mais aberta, atilada, dos problemas brasileiros. E no fundo, o meio estudantil sente isso. Ele sente que as universidades não abrem caminho para atuar naquilo que interessa, ou abrem um só caminho, que é aquilo que foi citado, que é o do mercado.

O espírito capitalista sempre existiu no Brasil, nós somos um dos primeiros países capitalistas do mundo - no século XVI totalmente capitalistas, de mentalidade e de instituições - e em relação a isso é preciso também um grande trabalho de educação. Uma das minhas críticas mais acerbas aos grupos religiosos, às igrejas cristãs em particular, é o fato de elas não enxergarem que o espírito do capitalismo é um espírito absolutamente antievangélico. Há uma frase de Jesus nos evangelhos que eu costumo citar e que a meu ver é definitiva: “não podeis servir a dois senhores porque ou odiareis um e amareis o outro ou vos afeiçoareis a um e desprezareis o outro”. Sempre aquela duplicidade semítica, não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

CC: Qual a sua avaliação do governo Lula?
FKC: Sob vários aspectos, o governo Lula foi bem melhor do que o governo Fernando Henrique, porque o governo FHC foi o apogeu da privatização e do negocismo. E isso foi um crime, foi um crime contra o Brasil, nós ainda não temos consciência disso porque predomina entre nós esse espírito capitalista. Eu tive o orgulho de ser um dos autores de uma ação popular contra a venda na Bacia das Almas da Companhia Vale do Rio Doce e pude ver como o poder econômico exerce uma pressão absoluta sobre Executivo, Legislativo e como ele exerce uma pressão dificilmente resistível no Judiciário. Lula teve menos retrocessos.

Ao menos ele não retrocedeu à privataria do governo FHC. Esse período foi o apogeu da privatização e do negocismo. Mas o Lula não enfrentou os grandes problemas nacionais. E não o fez porque ele põe em primeiro lugar o seu poder e o seu prestígio. Ele é o maior talento demagógico que o Brasil já conheceu, muito superior ao de Jânio Quadros. Dificilmente, na história do Brasil nunca houve um governante que tivesse uma tal aprovação popular e ao mesmo tempo que tivesse toda a confiança dos proprietários, dos empresários, dos poderosos. Sob o aspecto de poder pessoal ele é um sucesso absoluto.

CC: Quais os principais desafios do próximo presidente?
FKC: Ele tem que enfrentar a crise mundial econômico-financeira, que não foi debelada e está sendo camuflada no Brasil graças às grandes habilidades do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Venho repetindo há quase 30 anos, como João Batista no deserto, que todos os países, sobretudo os subdesenvolvidos, devem ter um sistema de previsão e planejamento. É preciso criar no Brasil um órgão de planejamento independente do Executivo, com participação dos setores importantes da sociedade civil, dos empresários, mas também dos trabalhadores, de grupos sociais vulneráveis e das universidades.

O que acontece é que nós vivemos sempre da mão para a boca e de um dia para o outro. Existe um apagão, “ah, foi um imprevisto, um raio que caiu”. Como vai ser se amanhã se nós voltarmos a crescer, será que nós temos capacidade energética para crescer? Enfim, em planejamento o Brasil é um mistério, eu tenho impressão de que é quase um mistério sagrado, ninguém chega perto porque tem medo das conseqüências. E isso é fundamental.

É preciso criar um órgão que seja o cérebro desse país. Se tivéssemos planejamento e previsão, não dependeríamos do mandato do chefe do executivo. Por que nesse país nunca se faz uma obra com previsão de duração de mais de quatro anos? Porque ninguém quer fazer obras públicas para serem inauguradas pelo seu sucessor. Por que nunca se fez um programa sério de educação? Porque um programa sério de educação significa formar professores, os professores não se formam em quatro anos, e assim por diante. Não tenho mais confiança ou esperança em pessoas. Tenho em mudança institucional e de mentalidade. Se tivermos a chance de ter um presidente que crie um órgão de planejamento independente, aí vamos enxergar um caminho.

CC: E as empresas têm planejamento estratégico...
FKC: Mas os empresários são inteligentes, nós é que somos estúpidos. Eles são muito inteligentes, não existe grande empresa que não tenha planejamento estratégico. Mas eles não querem o planejamento do Estado, porque os empresários querem dominar o Estado.

CC: Diante das propostas dos partidos que se colocam hoje, qual é o melhor projeto político para o país?
FKC: Eles participam da mesma mediocridade, não conheço nenhum que seja importante. Se ele for importante, só para inglês ver. Perdão, para americano ver. Porque na verdade ele não é para valer.


Entrevista reproduzida do sítio da revista Carta Capital. http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-gerais/2010/janeiro/news_item.2010-01-16.4841773509/

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